Os 30 anos do acidente radioativo do césio-137
Técnicos retiram lixo radioativo das áreas contaminadas
nos setores Aeroporto e Ferroviário, no centro de Goiânia, bairros mais afetados pela contaminação do césio-137 |
A
cada mês de setembro, desde 1987, a árvore genealógica da família Alves
Ferreira lembra a maior tragédia radiológica urbana da história da humanidade.
Era
o dia 13 do mês de setembro, uma cápsula com cloreto de césio --sal obtido por
meio do radioisótopo 137 do elemento químico césio-- foi aberta em uma casa da
rua 57, no setor Aeroporto da capital goiana, antes de seguir para um
ferro-velho.
PRECONCEITOS
Os
dias seguintes foram de dor, ferimentos, sofrimento e morte. Depois,
preconceito e incerteza quanto ao futuro das 129 pessoas contaminadas pela
radiação. Esse dia jamais chegou ao fim.
Um
dia, uma passageira do táxi perguntou se
não tinha nenhum perigo de ficar no carro com os vidros fechados. Eu disse que
não, mas que ela ficasse à vontade se quisesse descer O Hyundai prateado modelo HB, placas de
Aparecida de Goiânia, está a duas quadras do aeroporto da capital goiana. Ele é
guiado por Odesson Alves Ferreira, 62, cuja mão esquerda exibe as cicatrizes do
acidente. Ele perdeu a palma da mão --ela foi reconstituída com parte da pele
que cobre o abdômen-- e as falanges do dedo indicador da mão foram amputadas.
Odesson cadastrou-se há um ano na Uber, após seguidas tentativas de empreendimentos
barradas pelo preconceito.
É a
memória oral da história do césio-137: conta inúmeras vezes com precisão o que
aconteceu desde o dia 13 de setembro de 1987. Tem, na cabeça, os números exatos
do peso da peça de ferro-velho, da cápsula de césio, do tamanho e das
especificações do que foi enterrado no depósito de Abadia de Goiás.
A
precisão das datas impressiona, assim como o bom humor ao contar situações
pitorescas dos primeiros dias de tragédia. “O médico pediu que eu tomasse
cerveja para que a urina eliminasse a radiação, e eu até achei bom --não
precisava justificar a cervejinha para a minha mulher. Mas não adiantou nada, e
o banheiro do bar precisou ser demolido porque também recebeu radiação.”
Antes
de dirigir e presidir, por duas vezes, a associação das vítimas, o aposentado
tentou por duas vezes investir em comércios de bairro em Aparecida de Goiânia, cidade que faz limite
com Goiânia e que abriga a maior parte da família Alves Ferreira, a mais
afetada pela tragédia --são 50 pessoas atingidas, além das duas mortes
diretamente ligadas ao acidente e outras duas posteriores.
“Fomos
chamados de ‘marajás’ porque recebíamos uma pensão miserável do Estado. Entrei
em depressão porque não podia mais trabalhar --fui aposentado por invalidez.
Montei uma frutaria, e todos os dias ia até o Ceasa buscar tudo fresquinho. Não
conseguia vender. As pessoas passavam na porta, iam até outro lugar e passavam
com a mercadoria. Acabei com a frutaria, e montamos um bar. Também passavam com
garrafa de cerveja vazia, iam no boteco vizinho e compravam. O irmão de um
deles me falou: 'O pessoal não compra cerveja aqui porque acha que está
contaminada'.”
Nos
anos seguintes, as vítimas fizeram uma via-crúcis para matricularem seus filhos
em colégios de Goiânia e de Aparecida de Goiânia. Receberam o não mais de duas
vezes cada uma.
Cunhada
de Odesson, Luiza Odete dos Santos mentiu por anos sobre a origem da longa
cicatriz que exibe no lado esquerdo do pescoço. “Isso aqui, pegando meu rosto,
passou a parecer uma mancha de vitiligo, e eu falava que era. E o pessoal me
ensinava um remédio. Depois, o tempo foi passando, e eu disse: vou viver. Se o
pessoal pergunta, eu falo. E fica assustado, porque ainda existe a
discriminação. Pessoas mal informadas ainda acham que a gente transmite
radiação.”
Lourdes
Alves Ferreira, mãe de Leide das Neves, 6 --a menina morta no acidente que
virou o símbolo da luta contra a radiação e o preconceito diante das vítimas--,
tem a guia médica zerada nas clínicas que frequenta por causa do acidente.
“As
recepcionistas insistem para saber por que ela é zerada”, diz. “Um dia, uma
gritou. E fui pertinho dela e falei: sou obrigada a explicar o porquê? Quando o
médico me chamou, ela fez questão de me acompanhar até o consultório. Eu disse
que era uma vítima do césio. O tempo todinho que fiquei esperando, se ela não
estava escrevendo, estava olhando para mim. Eu era uma pessoa estranha para
ela. Já aconteceu de a pessoa, quando soube quem era eu, se levantar de perto
de mim.”
Isso
aqui passou a parecer uma mancha de vitiligo, e eu falava que era. O tempo foi
passando, e eu disse: vou viver. Se perguntam, eu falo. Ficam assustados. Acha
que a gente transmite radiação
AS
VÍTIMAS ETERNAS
A
Secretaria Estadual da Saúde, por meio do Cara (Centro de Atendimento ao
Radioacidentado), ainda hoje monitora 1.292 pessoas, entre radioacidentados,
parentes da primeira e segunda geração e funcionários que tiveram contato com
os afetados durante os dias de controle da irradiação.
Elas
sofreram com problemas físicos e psiquiátricos. Obrigatoriamente, devem visitar
o Cara pelo menos uma vez por ano --a frequência já foi mensal e
semestral. Em 2016, o centro realizou
5.741 atendimentos --destes, 1.497 no setor de enfermagem e 811 no de
psicologia.
Membros
foram amputados, braços e mãos receberam enxertos e, em duas vítimas, as
feridas provocadas pelo contato com o césio --as radiodermites-- ainda não
fecharam. Eles vivem às custas de curativos, paliativos às lesões que sofreram
e nunca foram curadas. E ainda há o preconceito.
“Há
um cansaço com essa situação. Um rapaz que está para amputar o pé teve a
proposta para tratamento com células-tronco, com uma equipe da Suíça. E ele
negou: ‘Estou cansado de ser cobaia. Já não sei quantas tentativas foram
feitas, e nenhuma deu resultado. Prefiro ser amputado”, afirma a psicológica
Suzana Helou, que atende aos radioacidentados desde outubro de 1987.
CÁPSULA
E CONTAMINAÇÃO
A
cápsula que causou o acidente era parte de um aparelho radioterapêutico que
estava abandonado no terreno em que funcionou o Instituto Goiano de Radioterapia
(IGR). Foi utilizado de 1971 até 1985, quando o instituto foi desativado. O
equipamento de teleterapia (radioterapia
externa) , que continha o césio, foi abandonado naquele ano em meio às ruínas
do centro de radioterapia.
A
peça foi encontrada no dia 13 de setembro de 1987 por Wagner Mota Pereira e
Roberto Santos Alves, que depois a revenderiam para um ferro-velho. A peça, de
aproximadamente 200 quilos de ferro e chumbo, tinha 19,26 gramas de césio-137,
guardada em um recipiente arredondado, semelhante a uma lata de goiabada. Ela
foi levada para a casa de Roberto. No terreno da rua 57, o invólucro de chumbo
foi perfurado, e a placa de lítio que isolava as partículas radioativas,
rompida.
De
lá, a peça foi vendida para Devair Alves Ferreira, então com 37 anos e dono de
um ferro‑velho na rua 26-A, no mesmo bairro. Ele percebeu o brilho azul que
irradiava do recipiente arredondado. Fragmentos de pó saíam da cápsula e foram
distribuídos. Assim, o brilho e a contaminação se espalharam pelos bairros
adjacentes ao setor Aeroporto.
Dos
que tiveram contato com o pó, restaram 46 pessoas diretamente contaminadas.
Todas elas passaram por um banho com escovação e vinagre para se
descontaminarem, mas a radiação continuou. Suas roupas, seus pertences e suas
casas demolidas foram descartados --estão enterrados no depósito de lixo
radiológico de Abadia de Goiás (23 km de Goiânia).
Quatro
pessoas morreram depois de um mês isoladas no hospital naval Marcílio Dias, no
Rio de Janeiro: Leide da Neves Ferreira, 6, Maria Gabriela Ferreira, 37, Israel
Baptista dos Santos, 22, e Admílson Alves de Souza.
Todos
eles receberam uma dose muito alta de radiação, medidas pelo índice Gy (gray).
Para cada sessão de radioterapia para câncer de mama, por exemplo, a dose é de,
no máximo, 2 Gy. Devair, que teve contato com uma dose maior (7 Gys),
sobreviveu por não ingerir o pó. Leide das Neves, que ingeriu o césio ao comer
um ovo cozido com as mãos sujas da substância, absorveu diretamente 6 Gy.
Os
corpos tiveram que ser colocados em caixões de chumbo, de cerca de 700 quilos,
e sepultados sob uma estrutura de toneladas de concreto. Os primeiros enterros,
de Leide e de Maria Gabriela, sofreram tentativas de impedimento, com blocos
interrompendo o tráfego de veículos e pedras e cruzes dos túmulos atiradas
contra os veículos que transportavam os caixões, que foram içados por um
guindaste para os túmulos. As
estruturas de concreto, que não têm contato com o solo, mas recebem
constantemente flores de quem ainda se sensibiliza com a tragédia, hoje são as
mais preservadas do Cemitério Parque de Goiânia.
Presidente
da Associação das Vítimas do Césio-137, Suely Lina de Moraes ainda reside na
mesma casa da época do acidente, na rua 26. Os fundos da residência dão para o
terreno concretado que um dia foi o ferro-velho de Devair --a casa foi demolida
depois do acidente. “A diretora trazia meu filho da escola e o deixava na
esquina, por medo de contaminar. Esses dias teve um evento no lote do Devair, e a polícia
veio para acompanhar. Quando viram que era a rua do césio, não entraram. Não
desceram com medo da radiação.”
HOJE,
NÃO HÁ MAIS CONTAMINAÇÃO NAS PESSOAS NEM NOS LOTES.
Suely
sorri o tempo todo, mesmo quando se lembra da tragédia. É ela a responsável por
controlar as informações e os cuidados com as vítimas do acidente. “Tem os
remédios de uso contínuo que não estão disponiveis no SUS. Mas outros custam R$
200, R$ 100. E não tem.” O Cara afirma que a questão de abastecimento de
medicamentos está sendo resolvida pela Secretaria Estadual da Saúde.
Ela
tem um mapa, feito à mão, com as vítimas de câncer residentes nos setores
Aeroporto e Ferroviário, os mais atingidos pela radiação. Ela aponta 23 casos.
“São os moradores daqui, que não saíram daqui. Não vieram fazer pesquisa
[epidemiológica, que atesta a incidência maior ou menor de doenças] deles.
Nunca
foram na fundação, nem sabem onde é. Enquanto as vítimas diretas eram
atendidas, eles continuaram aqui. Estavam expostos [à radiação].”
“As
doenças causadas pela radiação limitam-se às mortes da época do acidente e aos
22 pacientes com radiodermites. Foram 129 vítimas diretas. Nós podemos afirmar
que a doença do césio se limita a esse grupo”, rebate o diretor-geral do Cara,
André Luiz de Souza.
“É
um discurso permanente deles, de que serão sempre vítimas do acidente. É um
fator estressor permanente, de um dia contraírem doenças degenerativas, como
câncer e leucemias, ou ter um descendente com deformação genética. Foi o que um
pesquisador norte-americano chamou de ‘grávidos da morte’. Tudo é atribuído ao
acidente radiológico”, afirma a psicóloga Suzana Helou.
Em
dezembro de 2016, Helou entrevistou acidentados e também a população em geral.
A pergunta era se os atingidos pela exposição ao césio ainda se consideravam
vítimas do acidente radioativo. “Mais de 80% respondeu que sim”, diz. “A maior
incidência de resposta é a discriminação que eles acreditam sofrer por parte da
população em geral.”
CONSTRUÇÃO
DO DEPÓSITO
A 23
km do local do acidente, o antigo vilarejo de Abadia de Goiás foi escolhido
para receber os restos da tragédia. Foram 17 anos para que a estrutura ficasse
pronta: dois campos de concreto cobertos de grama com 60 metros de comprimento,
18 de largura e oito de altura.
O
reservatório contém todas as blindagens e a fonte que continha o césio --nele
estão todos os rejeitos de média radioatividade.
Abadia
virou cidade de 6.868 habitantes, emancipada em dezembro de 1995. A cidade foi
escolhida tecnicamente, com base na geologia local para que não tivesse
influência na natureza , afirma Marco Antonio Pereira da Silva, do CRCN-CO
(Centro Nacional de Ciência Nuclear do Centro-Oeste). Os materiais contaminados
estão envolvidos em contêineres, e a base de concreto impede que eles
contaminem o solo nem o lençol freático, aponta.
O
desenvolvimento, afirma, veio em parte pela construção do depósito. "Antes
da instalação, havia muito medo de remover o depósito para cá, por falta de
informação. Hoje, a população sabe que não há nenhum risco --pelo contrário,
isso trouxe desenvolvimento. Abadia entrou no mapa científico do mundo --muita
gente vem para cá para fazer pesquisas e desenvolver outras. Não há estigma na
cidade --ele é maior em Goiânia do que aqui. Abadia é uma cidade que se
incorporou à construção do depósito. Fonte: UOL Noticias – 10 de setembro de
2017
Artigo
publicado
Marcadores: contaminação, energia nuclear, radiação
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