POLO PETROQUÍMICO DE CAPUAVA: FÁBRICA DE DOENTES
As noites são alaranjadas
como um crepúsculo. Os dias amanhecem cobertos de pó preto, e as pessoas e os
cachorros vivem sonolentos. Na tríplice divisa entre os municípios de São
Paulo, Santo André e Mauá, a megalópole preserva seu caráter industrial e seu
efeito colateral: a poluição.
Nas últimas décadas, enquanto
o polo petroquímico de Capuava se expandia, a população se adensou no entorno.
"Escolhi morar aqui porque meu olho cresceu quando vi tanta indústria por
perto: ia ter trabalho. No final, o que a gente conseguiu mesmo foi ficar
doente", lembra a diarista Dorotéia de Oliveira Silva.
Em sua sala, a mesinha de
canto já dá o diagnóstico: os retratos da família dividem espaço com as caixas
de remédios. Todos ali têm problemas respiratórios. Além da tosse contínua,
Ellen Cristina, a filha mais velha, acumula também sangramento no nariz e pele
empipocada, o que obriga a jovem a perder muitos dias de aula.
A família de Dorotéia ficou
presa nessa atmosfera doentia porque financiou em 10 anos seu apartamento pelo
Minha Casa Minha Vida e, pelas regras do programa federal, não pode vendê‑lo.
"Pelo que oferecem por esse apartamento, só consigo comprar um barraco em
favela", lamenta.
Cristiane Dantas, mãe solo e
liderança de movimento por moradia na zona leste paulistana, vive drama
semelhante. Ela está entre as 700 famílias cadastradas para um conjunto
habitacional já aprovado e que vai ser construído colado ao polo. "Temo
pela saúde do meu filho, mas foi a única chance de sair do aluguel que
encontrei. Se tivesse condições, iria para fora de São Paulo. Mas o jeito é
ficar e lutar para melhorar o ar e o atendimento médico por aqui."
Histórias como essas mostram que a poluição é mais um subproduto da
desigualdade no Brasil.
METAL PESADO
DOENÇA DA GLÂNDULA TIREOIDE
Maria Angela Zaccarelli é
professora de endocrinologia na Faculdade de Medicina do ABC, com mais de três
décadas de pesquisas sobre o efeito da poluição do polo de Capuava sobre a
população. Em 2002, ela constatou que o mal de Hashimoto, doença autoimune
incurável que afeta a glândula tireoide, tem índices alarmantes em 2.004
moradores do entorno.
Um estudo apontou que 10% das
crianças em idade escolar de Capuava tinham hipotireoidismo (o normal é 1%), o
que afeta o crescimento corporal e o desenvolvimento cerebral. Entre as
mulheres adultas, até 30% apresentaram a doença que prejudica a produção hormonal
e causa cansaço, ganho de peso, diminuição da frequência cardíaca, entre outros
sintomas.
Lucilene Cardoso é uma das
impactadas. Moradora do paulistano Parque São Rafael, ela desenvolveu nódulos
na tireoide há seis anos. "Ainda bem que meu filho paga plano médico e eu
posso monitorar a situação com ultrassons e punções. Se fosse depender da saúde
pública, já estava morta", conta. Sua cunhada Elisângela, também com
atendimento privado, teve de retirar a glândula porque apresentava câncer.
Já Maria Claudino nasceu e
viveu seus 57 anos no Jardim Sônia Maria, em Mauá. Há 25, convive com
hipotireoidismo e faz reposição hormonal diariamente. "O polo foi crescendo
em direção ao meu bairro. Então, não aceito a história de que a indústria veio
antes. Minha família foi vítima dessa expansão industrial", critica. Em
sua casa, ela e o irmão sofrem do mal de Hashimoto (raríssimo em homens).
Segundo ela, 75% das casas de sua rua têm casos. "Seria bom fazer um exame
em massa aqui, mas só de levantar a estatística já mostra a tragédia."
PIRA NADA OLÍMPICA
O polo petroquímico funciona
24 horas, sete dias por semana. Além da fuligem, os moradores se queixam do
cheiro forte e do ruído alto, principalmente à noite — parte dos combustíveis é
queimada em um dispositivo chamado flare, que faz barulho semelhante a um
maçarico gigante. Os vizinhos afirmam que as empresas aproveitam a escuridão da
noite para despejar fumaça negra no ar e escapar das multas da Cetesb, agência
estadual que monitora as atividades poluidoras.
Em 1954, um grupo de
empresários inaugurou em Mauá a refinaria conhecida como Recap, atraindo 12 mil
acionistas minoritários após campanha promovida por Assis Chateaubriand
(1892-1968), magnata das mídias de então. A primeira vítima dos dejetos foi o
rio Tamanduateí, que passa por lá e deságua no Tietê.
Em 1974, a indústria foi
incorporada à Petrobras. Na virada do século, uma mudança na lei de zoneamento
industrial possibilitou a expansão do polo, incluindo empresas de plásticos e
fertilizantes. Os bairros vizinhos cresceram também, em loteamentos oficiais ou
não. Fábricas e residências estão frente a frente em algumas avenidas — bem
longe dos oito quilômetros de distância recomendada.
VIDA REMEDIADA
Não há endocrinologistas,
pneumologistas nem dermatologistas nos postos públicos perto das refinarias.
Também estão sempre em falta remédios para os males que a poluição causa. Resultado:
uma farmácia aproveitou esse "nicho de mercado" e oferece prateleira
cheia de medicamentos — lembrando que a parte plástica das embalagens é feita a
partir do petróleo.
"Não tem dia que não
venda pelo menos uma caixa para problemas na tireoide. Fico triste quando sei
que é para uma criança", conta a farmacêutica Angela Maria da Silva, 57.
Ela especializou sua loja após sofrer na própria pele, que ficou amarelada após
ser atingida pela tireoidite. "Foi há 20 anos. Comecei a ganhar peso,
perder cabelo e sentir muito cansaço e não havia uma razão para tudo isso. Fui
ao médico, e ele diagnosticou."
A prateleira dos remédios
para o sistema respiratório também é bem abastecida e diversificada. "Até
os medicamentos mais simples estão em falta nos postos." O que sobra por
lá é pó no chão da farmácia, mesmo com as funcionárias lavando o piso três
vezes por dia.
REFÉNS NO QUINTAL
Zeus, um pitbull branco,
ficava cinza toda semana, e a cada 15 dias ia para o banho no pet shop do
bairro. As patas de Zeus se tingiam no chão e pintavam os muros da casa da
família Claudino em Mauá, a quatro quarteirões do polo. De tanto sofrimento
animal e tanto custo para os humanos, a família, que tem dois integrantes com
problemas de saúde devido à poluição, decidiu dar ao cão um melhor destino: um
lar de amigos, bem longe do polo.
Joe não teve a mesma sorte. O
ganho de peso sem mudança de dieta e o comportamento agressivo (tentava morder
se era acordado, em meio a várias horas de sono) pareciam bem estranhos para a
raça golden retriever, conhecida por sua docilidade e disposição para brincar.
"Levei na veterinária e,
depois de uns exames, ela disse que era mais um caso de cachorro com problema
de tireoide", afirma a dona de casa Luciane Carneiro. Deixando sua dona
com saudade, o mascote vai duas vezes por semana para o centro de Santo André
para escapar da poluição e ficar no apartamento do filho de Luciane.
PERGUNTE AO PÓ
As denúncias dos moradores já
geraram uma ação cível aberta em 2018 e uma CPI (Comissão Parlamentar de
Investigação) na Câmara Municipal de São Paulo, aprovada no final de abril. A
ação cível continua tramitando. Apesar das dezenas de multas aplicadas pela
Cetesb, a contaminação não para.
A Cetesb apontou que o pó
preto é "material carbonáceo" e, pelas concentrações encontradas, vem
do polo. O pó branco, detectado em março, seria "material inorgânico com
presença de terras raras", mas os fiscais não chegaram à empresa emissora
das partículas. A agência estadual comunicou que faz inspeções regulares nas
fábricas, rondas nos bairros vizinhos e fiscaliza se as empresas estão
modernizando seus equipamentos para reduzir a poluição — mesmo assim,
Petrobras, Braskem, Cabot e Oxiteno foram multadas recentemente por emissão de
poluentes. Além disso, a Cetesb instalou câmeras para filtrar flares e chaminés
para identificar fumaças escuras.
Já a Cofip ABC, entidade que
representa as indústrias privadas de Capuava, afirmou que o polo gera 10 mil
empregos diretos (e um total de 35 mil na cadeia produtiva), mas não tem um
cálculo de quantos são ocupados pelos moradores da região. Comunicou ainda que
investiu R$ 1,5 bilhão na modernização dos controles ambientais nos últimos
dois anos, valor maior que o investido no aumento da produção. A entidade
empresarial também declarou em comunicado que "não existem até hoje
indícios de correlação entre a atividade petroquímica e a doença de
tireoide".
Apesar dos resultados
alarmantes das pesquisas da FMABC, USP (Universidade de São Paulo) e CVE
(Centro de Vigilância Epidemiológica, ligado à Secretaria Estadual de Saúde),
falta uma ação coordenação entre os municípios e o Estado para diminuir os
males da poluição. Como não há médicos especialistas na área, os casos são
encaminhados para hospitais de outras regiões, o que acaba escondendo a real
dimensão do problema para poder balizar políticas públicas mais efetivas.
Em Mauá, por exemplo, os casos são levados para o Cemma (Centro de Especialidades Médicas de Mauá). A prefeitura de lá, em conjunto com Santo André, diz que fez levantamento sobre a saúde dos trabalhadores do polo — em geral, mais protegidos da poluição que a população do entorno por usar equipamentos. A prefeitura de Santo André também afirma que concentra as especialidades em determinados centros médicos do município e que a falta de remédios foi em virtude da pandemia, por problema de insumos na produção de medicamentos, mas que fez compras recentes e "os estoques já estão em média em 90% abastecidos". Fonte: UOL - Publicado em 10 de maio de 2022, autor Rodrigo Bertolotto.
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