Agrotóxico: Coquetel perigoso em água de consumo
As informações são parte do Sistema de Informação de
Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), que reúne os
resultados de testes feitos pelas empresas de abastecimento.
Os números revelam que a contaminação da água está
aumentando a passos largos e constantes.
■Em 2014, 75% dos testes detectaram
agrotóxicos.
■Em 2015, 84%
■Em 2016, 88%
■Em 2017, 92%
A falta de monitoramento também é um problema. Dos 5.570
municípios brasileiros, 2.931 não realizaram testes nas suas redes de
abastecimento entre 2014 e 2017
Embora se trate de informação pública, os testes não são
divulgados de forma compreensível para a população, deixando os brasileiros no
escuro sobre os riscos que correm ao beber um copo d'água. Em um esforço
conjunto, a Repórter Brasil, a Agência Pública e a organização suíça Public Eye
fizeram um mapa com os agrotóxicos encontrados em cada cidade. O mapa revela
ainda quais estão acima do limite de segurança de acordo com a lei do Brasil e
pela regulação europeia.
O retrato nacional da contaminação da água gerou alarde
entre profissionais da saúde. "A situação é extremamente preocupante e
certamente configura riscos e impactos à saúde da população", afirma a
toxicologista e médica do trabalho Virginia Dapper. O tom foi o mesmo na reação
da pesquisadora em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Ceará,
Aline Gurgel: "dados alarmantes, representam sério risco para a saúde
humana".
Entre os agrotóxicos encontrados em mais de 80% dos testes,
há cinco classificados como "prováveis cancerígenos" pela Agência de
Proteção Ambiental dos Estados Unidos e seis apontados pela União Europeia como
causadores de disfunções endócrinas, o que gera diversos problemas à saúde,
como a puberdade precoce. Do total de 27 pesticidas na água dos brasileiros, 21
estão proibidos na União Europeia devido aos riscos que oferecem à saúde e ao
meio ambiente.
MISTURA PREOCUPA PESQUISADORES
A mistura entre as diversas substâncias químicas foi um dos pontos que
mais gerou preocupação entre os especialistas ouvidos. O perigo é que a
combinação de substâncias multiplique ou até mesmo gere novos efeitos. Essas
reações já foram demonstradas em testes, afirma a química Cassiana Montagner.
"Mesmo que um agrotóxico não tenha efeito sobre a saúde humana, ele pode
ter quando mistura com outra substância", explica Montagner, que pesquisa
a contaminação da água no Instituto de Química da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), de São Paulo. "A mistura é uma das nossas principais
preocupações com os agrotóxicos na água."
Os paulistas foram os que mais beberam esse coquetel nos
últimos anos. O estado foi recordista em número de municípios onde todos os 27
agrotóxicos estavam na água. São mais de 500 cidades, incluindo a grande São
Paulo - Guarulhos, São Bernardo do Campo, Santo André e Osasco - além da
própria capital. E algumas das mais populosas, como Campinas, São José dos
Campos, Ribeirão Preto e Sorocaba. O estado do Paraná foi o segundo colocado,
com coquetel presente em 326 cidades, seguido por Santa Catarina e Tocantins.
Os especialistas falam muito sobre a
"invisibilidade" do efeito coquetel. As políticas públicas não
monitoram a interação entre as substâncias porque os estudos que embasam essas
políticas não apontam os riscos desse fenômeno. "Os agentes químicos são
avaliados isoladamente, em laboratório, e ignoram os efeitos das misturas que
ocorrem na vida real", diz a médica e toxicologista Dapper.
Por isso, ela lamenta, as pessoas que já estão desenvolvendo
doenças em decorrência dessa múltipla contaminação provavelmente nunca saberão
a origem da sua enfermidade. Nem os seus médicos.
LIMITE FIXADO PARA REGULAR A MISTURA DE SUBSTÂNCIAS
Questionado sobre quais medidas estão sendo tomadas, o
Ministério da Saúde enviou respostas por email reforçando que "a exposição
aos agrotóxicos é considerada grave problema de saúde pública" e listando
efeitos nocivos que podem gerar "puberdade precoce, aleitamento alterado,
diminuição da fertilidade feminina e na qualidade do sêmen; além de alergias,
distúrbios gastrintestinais, respiratórios, endócrinos, neurológicos e
neoplasias".
A resposta, porém, ressalta que ações de controle e
prevenção só podem ser tomadas quando o resultado do teste ultrapassa o máximo
permitido em lei. E aí está o problema: o Brasil não tem um limite fixado para
regular a mistura de substâncias.
Essa é uma das reivindicações dos grupos que pedem uma
regulação mais rígida para os agrotóxicos. "É um absurdo esse problema
ficar invisível no monitoramento da água e não haver ações para
controlá-lo", afirma Leonardo Melgarejo, engenheiro de produção e membro da
Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. "Se detectar diversos
agrotóxicos, mas cada um abaixo do seu limite individual, a água será
considerada potável no Brasil. Mas a mesma água seria proibida na França."
Ele se refere à regra da União Europeia que busca restringir
a mistura de substâncias: o máximo permitido é de 0,5 microgramas em cada litro
de água - somando todos os agrotóxicos encontrados. No Brasil, há apenas
limites individuais. Assim, somando todos os limites permitidos para cada um
dos agrotóxicos monitorados, a mistura de substâncias na nossa água pode chegar
a 1.353 microgramas por litro sem soar nenhum alarme. O valor equivale a 2.706
vezes o limite europeu.
DOSES PEQUENAS, RISCO GRANDE
Mesmo quando se olha a contaminação de cada agrotóxico
isoladamente, o quadro preocupa. Dos 27 agrotóxicos monitorados, 20 são
listados como altamente perigosos pela Pesticide Action Network, grupo que
reúne centenas de organizações não governamentais que trabalham para monitorar
os efeitos dos agrotóxicos.
Mas, aos olhos da lei brasileira, o problema é pequeno.
Apenas 0,3% de todos os casos detectados de 2014 a 2017 ultrapassaram o nível
considerado seguro para cada substância. Mesmo considerando os casos em que se
monitora dez agrotóxicos proibidos no Brasil, são poucas as situações em que a
presença deles na água soa o alarme.
E esse é o segundo alerta feito por parte dos pesquisadores:
os limites individuais seriam permissivos. "Essa legislação está há mais
de dez anos sem revisão, é muito atraso do ponto de vista científico"
afirma a química Montagner.
Ela se refere a pesquisas mais recentes sobre os riscos do
consumo frequente e em quantidades menores, um tipo de contaminação que não
gera reações imediatas. "Talvez certo agrotóxico na água não leve 15% da
cidade para o hospital no mesmo dia. Mas o consumo contínuo gera efeitos
crônicos ainda mais graves, como câncer, problemas na tireoide, hormonal ou
neurológico", alerta Montagner. "Já temos evidências científicas, mas
a água contaminada continua sendo considerada como potável porque não se olha
as quantidades menores", afirma.
Em resposta a essa crítica, um grupo de trabalho foi criado
pelo Ministério da Saúde para rever os limites da contaminação. "Estamos
fazendo um trabalho criterioso", afirma Ellen Pritsch, engenheira química
e representante da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental no
grupo. Segundo ela, pesquisas internacionais e regulações de outros países
estão sendo levados em conta. A previsão é que os trabalhos, iniciados em 2014,
sejam concluídos em outubro.
SÃO PAULO É O RECORDISTA DESSE FENÔMENO DE INTOXICAÇÃO.
Pelo menos 144 cidades detectaram o mesmo pesticida de modo
contínuo durante os quatro anos de medições seguidos, segundo os dados. Mais
uma vez, São Paulo é o recordista desse fenômeno de intoxicação. Especialistas
ouvidos pela reportagem apontam o uso de pesticidas na produção de cana de
açúcar como a provável origem para a larga contaminação do estado. "A
cultura da cana é a que tem mais herbicidas registrados. Como São Paulo é um
dos maiores produtores de cana, isso justifica sua presença elevada [de
pesticidas na água]", afirma Kassio Mendes, coordenador do comitê de qualidade
ambiental da Sociedade Brasileira da Ciência das Plantas Daninhas.
O diuron, um dos principais herbicidas usados pelo setor,
foi detectado em todos os testes feitos na água dos mananciais das regiões onde
mais se cultiva cana no estado, segundo dados de 2017 da Companhia Ambiental do
Estado de São Paulo (Cetesb). A substância é uma das apontadas como provável
cancerígena pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos.
EMPURRA-EMPURRA
Depois de contaminada, são poucos os tratamentos disponíveis
para tirar o agrotóxico da água. "Alguns filtros são capazes de tirar
alguns tipos de agrotóxicos, mas não há um que dê conta de todos esses",
afirma Melgarejo. "A água mineral vem de outras fontes, mas que são
alimentadas pela água que corre na superfície, então eventualmente também serão
contaminadas."
O trabalho preventivo, ou seja, evitar que os agrotóxicos
cheguem aos mananciais, deveria ser primordial, afirma Rubia Kuno, gerente da
divisão de toxicologia humana e saúde ambiental da Cetesb. "O esforço deve
ser na prevenção porque o sistema de tratamento convencional não é capaz de
remover os agrotóxicos da água", afirma.
O Ministério da Saúde diz que a vigilância sanitária dos
municípios e dos estados deve dar o alerta aos prestadores de serviços de
abastecimento de água para que tomem as providências de melhoria no tratamento
da água. "Caso os dados demonstrem que o problema ocorre de forma
sistemática, é preciso buscar soluções a partir da articulação com os demais
setores envolvidos, como órgãos de meio ambiente, prestadores de serviço e
produtores rurais", diz a nota enviada pelo órgão.
SEGURANÇA DOS PESTICIDAS
Questionado sobre quais ações estão sendo tomadas, o
Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), que
representa os produtores de agrotóxicos, fez uma defesa sobre a segurança dos
pesticidas. Em nota, o grupo afirma que a avaliação feita pela Anvisa, Ibama e
Ministério da Agricultura garante que eles são seguros ao trabalhador,
população rural e ao meio ambiente "sempre que utilizados de acordo com as
recomendações técnicas aprovadas e indicadas em suas embalagens".
O sindicato afirma que a aplicação correta dos produtos no
campo é um desafio e atribui a responsabilidade aos trabalhadores que aplicam
os pesticidas. "O setor de defensivos agrícolas realiza iniciativas para
garantir a aplicação correta de seus produtos, uma vez que alguns problemas
estruturais da agricultura como a falta do hábito da leitura de rótulo e bula e
analfabetismo no campo trazem um desafio adicional de cumprimento às
recomendações de uso."
Em Santa Catarina, que está entre os três estados com maior
contaminação, o Ministério Público Estadual chamou a responsabilidade de
prefeituras, secretarias estaduais, concessionárias de água, agências
reguladoras e sindicatos de produtores e trabalhadores rurais. A iniciativa
partiu dos resultados de um estudo inédito que encontrou agrotóxicos na água de
22 municípios. "Alertamos todos os órgãos públicos e privados envolvidos
para buscar soluções, é preciso aplicar medidas corretivas para diminuir os
riscos dos cidadãos", diz a promotora Greicia Malheiros, responsável pela investigação.
A iniciativa teve início em março desse ano e ainda não tem resultados.
Mais do que remediar a contaminação da água, a coordenadora
técnica do estudo, a engenheira química Sonia Corina Hess, defende a proibição
do uso dos pesticidas que oferecem maior risco. Das substâncias encontradas em
seu estudo no estado catarinense, sete estão proibidas na União Europeia por
oferecer risco à saúde humana. "Tem que proibir o que é proibido lá fora,
tem que proibir o que é perigoso. Se faz mal para eles porque no Brasil é
permitido?", questiona.
PERIGOSO NA EUROPA, PERMITIDO NO BRASIL
O controle da água feito pelo Brasil também está distante
dos parâmetros da União Europeia. Com o objetivo de eliminar a contaminação, o
continente fixou a concentração máxima na água em 0,1 micrograma por litro -
valor que era o mínimo detectável quando a regulação foi criada.
Para descobrir como a água do Brasil seria avaliada pelo
padrão europeu, a organização Public Eye classificou os dados fornecidos pelo
Ministério da Saúde segundo o critério daquele continente. Alguns dos
agrotóxicos mais perigosos ultrapassaram os limites europeus em mais de 20% dos
testes. Entre eles, o glifosato e o mancozebe, ambos associados a doenças
crônicas, e o aldicarbe, proibido no Brasil e classificado pela Anvisa como
"o agrotóxico mais tóxico registrado no país, entre todos os ingredientes
ativos utilizados na agricultura".
GLIFOSATO
O glifosato é o caso mais revelador sobre as peculiaridades
do Brasil na regulação sobre agrotóxicos. Classificado como "provável
carcinogênico" pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, órgão da
Organização Mundial da Saúde, o pesticida está sendo discutido em todo o mundo.
Há milhares de pacientes com câncer processando os fabricantes nos Estados
Unidos - e vencendo nos tribunais - , além de protestos e petições pedindo a
sua proibição na Europa. Não há consenso, entre as agências reguladoras, sobre
sua classificação. No Brasil, que oficialmente colocou a substância em revisão
desde 2008, o Ministério da Agricultura liberou novos registros para a venda de
glifosato no início deste ano. O pesticida passou a ser vendido em novas
formas, quantidades e por número maior de fabricantes.
Nos testes com a água do país, a controversa substância foi
a que mais ultrapassou a margem de segurança segundo o critério da União
Europeia: 23% dos casos acima do limite. Pela lei brasileira, o glifosato foi
um dos que menos soou o alarme: apenas 0,02% dos testes ultrapassaram o nosso
limite.
"Isso é um escândalo de saúde pública. Nós colocamos o
limite alto, lá na estratosfera, e aí comemoramos que temos uma água
segura", questiona a pesquisadora Larissa Bombardi, professora de
geografia na Universidade de São Paulo e autora de um atlas que compara a lei
brasileira e europeia no controle dos agrotóxicos. Seu estudo revela como
nossos limites chegam a ser 5.000 vezes mais altos que os europeus. O caso mais
grave é o do glifosato: enquanto na Europa é permitido apenas 0,1 miligramas
por litro na água, aqui no Brasil a legislação permite até 500 miligramas por
litro.
Como o glifosato é o agrotóxico mais vendido no país, e
também o que tem o limite mais generoso para presença na água, Bombardi lança
suspeitas sobre os critérios usados: "no caso do glifosato é realmente
difícil encontrar justificativa científica, parece ser mais uma decisão
política e econômica". O pesticida foi o mais consumido em 2017 no Brasil
com 173 mil toneladas vendidas, segundo o Ibama. O volume corresponde a 22% das
estimativas de vendas para esse químico em todo o mundo no mesmo ano - o que
faz do Brasil um importante mercado para as fabricantes, entre elas as gigantes
Syngenta e a Monsanto - comprada pela Bayer no ano passado.
A DISCREPÂNCIA ENTRE BRASIL E EUROPA
A larga diferença entre os limites fixados pela União
Europeia e pelo Brasil é um dos principais argumentos dos críticos do uso da
substância no Brasil. "Essa diferença só pode se dar por dois motivos. Ou
porque nossa sociedade é mais forte, somos seres mais resistentes aos
agrotóxicos. Ou mais tola, porque estamos sendo ingênuos quanto aos riscos que
corremos", provoca Melgarejo, da Campanha Contra os Agrotóxicos.
A engenheira química Ellen Pritsch, representante da
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental no grupo de trabalho
que reavalia os limites dos pesticidas na água, discorda. Para ela, os atuais
limites são seguros e foram fixados com embasamento científico. "O
critério brasileiro é dez vezes menor do que o efeito que geraria problema.
Então, mesmo que seja encontrado um percentual acima esse valor, ainda assim
seria menor [estaria abaixo do risco]", afirma.
Antes de aprovar os registros dos agrotóxicos, as empresas
fabricantes entregam estudos com testes feitos com animais em laboratórios. O
Sindiveg, sindicato da indústria de fabricantes de pesticidas, defende que
esses estudos são o suficiente para avaliar os riscos das substâncias.
"São estudos de bioconcentração em peixes e micro-organismo, algas e organismos
do solo, abelhas, microcrustáceos, peixes e aves", afirma nota enviada
pelo Sindiveg em resposta às perguntas da reportagem
A principal reivindicação dos grupos que fazem campanha pelo
controle dos agrotóxicos para evitar efeitos no Brasil é por mais restrição e
até pela proibição de alguns dos pesticidas hoje aprovados no país, como a
atrazina, o acefato e o paraquate, que são campeões de venda no Brasil, mas
proibidos na União Europeia. Fonte: UOL Noticias - 15 de abril de 2019.
Marcadores: contaminação, Meio Ambiente
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