
Agricultores do Sul e do Sudeste do Brasil estão sofrendo
com os ataques da lebre europeia, vulgo "lebrão". Os prejuízos chegam
a 100% da produção em regiões de cultivo de brócolis e couve-flor, por exemplo.
Plantações de citrus também amargam prejuízo alto, na casa dos 20%, segundo
cálculos dos próprios agricultores.
A lebre rói o caule de pés de laranja, limão e tangerina,
que morrem poucos dias depois, por falta de seiva. Produtores rurais reclamam
ainda da presença do animal em cultivos de soja, maracujá, feijão, hortaliças,
melancia, abóbora, melão, pupunha, mandioca, mandioquinha, batata-doce, café,
quiabo e seringueira.
ESTADOS QUE MAIS SOFREM COM A INVASÃO
"Os Estados que mais sofrem com a invasão são Rio
Grande do Sul, São Paulo e Paraná", afirma a ecóloga Clarissa Alves da
Rosa, pesquisadora da Universidade Federal de Lavras (MG). Ela lembra que a
presença do lebrão é tão marcante nas terras paranaenses que, ao sobrevoar o
Aeroporto Internacional Afonso Pena, na Grande Curitiba, é possível ver lebres
europeias invadindo a pista.
O animal, no entanto, vem subindo o mapa do Brasil pelas
próprias pernas, e numa velocidade alta de dispersão - cerca de 45,35
quilômetros por ano. Há registros da espécie em Minas Gerais, Goiás e no Mato
Grosso do Sul.
CAÇA ESPORTIVA
A Lepus europaeus, como denomina o nome científico, é nativa
da Europa. Trazida para Argentina e Chile visando à caça esportiva, teria se
proliferado pelos países vizinhos e chegado ao Brasil nos anos 1950, por meio
da fronteira com o Uruguai.
Sua primeira pegada no país, publicada em literatura, foi em
Santa Vitória do Palmar (RS), no ano de 1982. Mais de três décadas depois, ela
estaria presente em 135 localidades brasileiras. De dois anos para cá, porém,
os agricultores têm sentido uma disparada na frequência do animal.
TOMANDO LEBRE POR GATO
O lebrão recebe esse nome aumentativo pelo porte
"atlético". Sentado com as patas encolhidas, e desconsiderando as
orelhas de pontas negras, ostenta cerca de 25 centímetros de altura. Pesa de
dois a cinco quilos.
E, em pleno salto, chega a uns 70 centímetros de
comprimento, o que faz lembrar um gato. Tem uma plasticidade ecológica alta,
isto é, adapta-se a diferentes ambientes, embora prefira campos abertos.
Latifúndios de monocultura, portanto, são caros ao seu apetite voraz.
TAXA DE REPRODUÇÃO ELEVADA
São perfeitos também para as suas já elevadas taxas de
reprodução. "Mamíferos tendem a ajustar a reprodução em períodos de maior
oferta de alimento", explica Clarissa Rosa. A lebre europeia apresenta de
quatro a sete gestações anuais, concebendo até quatro filhotes por ninhada. Ou
seja, uma lebre pode ter 28 crias por ano - sendo que as fêmeas dessa ninhada,
aos 5 meses de idade, já estão maduras sexualmente para se reproduzirem.
HÁBITO NOTURNO
A espécie não se deixa pegar com facilidade. De hábito
predominantemente noturno, é bastante rápida e arisca, dificultando a ação do
predador. Enquanto na Europa linces, lobos e aves de rapina teriam saído ao seu
encalço, na América do Sul caçadores naturais não a incorporaram à dieta.
"Quando a lebre começou a invadir o Rio Grande do Sul,
um dos Estados mais 'desfaunados' do Brasil, criou-se a esperança de que
poderia ser uma presa para os poucos predadores que ainda existiam, já que as
presas nativas estavam em declínio populacional", diz Clarissa Rosa.
Mas estudos de dez, 15 anos mostraram que os carnívoros
dessa área não se alimentam da lebre europeia, mesmo em áreas infestadas. A
dedução é que ela tem uma capacidade de fuga muito maior que as espécies
nativas.
CAÇADA DIFÍCIL
Que o digam os produtores. Cães da roça, por exemplo,
normalmente não dão conta de alcança‑la.
"Um agricultor me disse que, no começo, atiçava os
cachorros para saírem correndo atrás dos lebrões", conta o engenheiro
agrônomo Joaquim Adelino de Azevedo Filho. "Com o tempo, os cachorros
olhavam para ele e para a lebre e nem se mexiam, tipo assim: 'quer mesmo que a
gente perca o nosso tempo?'"
PREJUÍZOS NA LAVOURA
Azevedo Filho é pesquisador científico da APTA (Agência Paulista
de Tecnologia dos Agronegócios) Regional Leste Paulista, em Monte Alegre do
Sul. Há cerca de 20 anos, testemunhou o efeito do ataque de lebrões a uma
plantação de melancia em Capela do Alto, região metropolitana de Sorocaba,
interior de São Paulo.
"Tiveram de parar porque a lebre raspava a melancia
novinha, que dali para frente crescia deformada", diz. Cinco anos depois,
relembra ele, na região de Indaiatuba (SP), um produtor de maracujá viu sua
colheita perdida porque o bicho roía o pé e a planta morria.
Em Monte Alegre do Sul, o estrago foi nas plantações de soja
e crotolária, leguminosa usada para adubo verde. "O ataque à crotolária
não foi tão sério porque não é uma cultura comercial, mas para a soja foi
prejudicial", avalia.
ESPANTALHOS DERROTADOS
Culturas de consumo familiar não escapam à ação desse animal
da ordem dos lagomorfos.
Pedro Luís Gazola, morador de Torrinha (SP), relata, em um
vídeo caseiro, a devastação nos pés de feijão carioquinha: "Até o fim da
rua, não tem nada, ela come tudo", narra desanimado, referindo-se a um
corredor já árido da plantação.
Espantalhos se mostraram inúteis. Tufos de cabelo, que
alguns produtores estão pedindo a salões de cabeleireiro, tampouco surtiram
efeito contínuo. "Ela parece não gostar do cheiro do cabelo, mas depois
chove, o cheiro desaparece e elas voltam a atacar as mudas", afirma
Gazola.
O produtor de soja Agnaldo Fernandes do Amaral, de Bragança
Paulista (SP), percebeu um afastamento do bicho por causa do cheiro - no caso,
vindo da pulverização de inseticida na sua lavoura, às margens da rodovia
Fernão Dias. Mas teme que seja insuficiente: "Elas estão procriando
demais".
NÃO É CLASSIFICADA PELO IBAMA COMO ESPÉCIE INVASORA NOCIVA
França Filho afirma ter encaminhado ao Ibama e à Secretaria
Municipal do Meio Ambiente e Urbanismo de São José do Rio Preto uma autorização
para o manejo da Lepus europaus com arma de fogo. "Enquanto não se declara
que é nociva, não pode matar", explica. "Fica meio no limbo; está
autorizado, mas não regulamentado."
ESPÉCIE NOCIVA?
O engenheiro agrônomo Rafael Salerno, também controlador de
javalis registrado pelo Ibama e caçador credenciado pelo Exército, traçou
caminho semelhante em pedido enviado ao Ibama em março de 2017.
Ali escreve estar ciente de que as lebres europeias já foram
declaradas como espécie exótica invasora segundo deliberação do Consema
(Conselho Estadual do Meio Ambiente) 30/2011 e reconhecidas como praga pelo
boletim IAC (Instituto Agronômico de Campinas) 110. Além disso, lembra que está
facultado ao Estado sua declaração como espécie nociva, conforme Instrução
Normativa 141/2006 do Ibama.
Recebeu como resposta do Instituto a informação de que
"não há uma norma que declare a espécie nociva em todo o território
nacional, mas, considerando que alguns Estados já declararam sua nocividade,
pessoas físicas ou jurídicas interessadas no controle da lebre devem solicitar
autorização junto ao órgão ambiental competente nos respectivos Estados
conforme as normas estaduais e, em casos excepcionais, solicitar essa autorização
para a unidade do Ibama no respectivo Estado".
OCORRE QUE NENHUM ESTADO BRASILEIRO DECLAROU A ESPÉCIE
NOCIVA.
"A lebre europeia vem ganhando território pelo Brasil
claramente pela inépcia e prevaricação dos órgãos estaduais de meio ambiente e
do Ibama", afirma Salerno, que mora em Sete Lagoas, Minas Gerais. Ele
ressalta que, talvez por predação direta, talvez por transmissão de doenças, ou
por causa dos dois motivos conjugados, o lebrão ainda estaria colaborando para
a extinção do tapiti, coelho nativo brasileiro.
De acordo com a bióloga Graziele Batista, analista ambiental
da Coordenação de Gestão, Destinação e Manejo da Biodiversidade, do Ibama,
paralelamente à elaboração de planos nacionais para prevenção, controle e
monitoramento de espécies exóticas invasoras e à revisão da estratégia nacional
para essas espécies, estão sendo reavaliados os critérios de priorização
daquelas que devem ser alvo de prevenção e controle para aprimorar normas,
mecanismos e ações.
IBAMA GARANTE NÃO TER DADOS OFICIAIS DE ESTIMATIVAS DE
PREJUÍZOS
O Ibama garante não ter dados oficiais de estimativas de
prejuízos na agricultura do país causados pela lebre europeia nem de seu
impacto ambiental. "Mas é uma espécie que certamente vai ser considerada
de alguma forma para controle, porque a distribuição dela tem aumentado muito
na última década", diz Batista.
A analista não soube informar se seria liberada a caça ou se
o controle seria por armadilha - ou por ambos. A priori, o veneno estaria
descartado. "Ele é muito usado em outros países, mas no Brasil seria
praticamente inviável, ainda mais em áreas de mata, porque dificilmente haverá
um veneno específico para a lebre europeia, o que poderia afetar espécies
nativas."
Para Emanuel Alexandre Coutinho, que dá consultoria a
agricultores de Senador Amaral, no sul de Minas - município que mais produz
brócolis no Brasil -, a coisa avançou a tal ponto que o plantio já é feito
considerando as perdas por ataques, que são certas e líquidas. "O preço
final do produto não aumentou, por enquanto, mas isso afeta a lucratividade e a
competitividade do agricultor", diz.
A ecóloga Clarissa Rosa afirma que o controle e a erradicação de uma
espécie invasora só é efetivo quando identificado nos primeiros momentos da
invasão..
O cenário fatídico não impede que produtores soltem rojões
na plantação - para tentar espantar os lebrões. Fonte: BBC Brasil - 6 de
novembro de 2017 l
Comentário: Espécies Exóticas Invasoras
A condição dos países em desenvolvimento na busca da
sustentabilidade, particularmente aqueles de mega‑diversidade, depende da
habilidade em proteger seus ecossistemas, economias e a saúde pública.
Infortunadamente, invasões de espécies exóticas - plantas, animais e
microrganismos - trazem uma significante e sem precedente ameaça aos recursos
desses países.
De acordo com a Convenção sobre Diversidade Biológica - CDB,
"espécie exótica" é toda espécie que se encontra fora de sua área de
distribuição natural. "Espécie Exótica Invasora", por sua vez, é
definida como sendo aquela que ameaça ecossistemas, hábitats ou espécies. Estas
espécies, por suas vantagens competitivas e favorecidas pela ausência de
inimigos naturais, têm capacidade de se proliferar e invadir ecossistemas,
sejam eles naturais ou antropizados (área cujas características originais foram alteradas).
Com a crescente globalização e o consequente aumento do
comércio internacional, espécies exóticas são introduzidas, intencional ou não
intencionalmente, para locais onde não encontram inimigos naturais, tornando-se
mais eficientes que as espécies nativas no uso dos recursos. Dessa forma,
multiplicam-se rapidamente, o que ocasiona o empobrecimento dos ambientes, a
simplificação dos ecossistemas e até mesmo a extinção de espécies nativas.
Espécies exóticas invasoras representam uma das maiores
ameaças ao meio ambiente, com enormes prejuízos à economia, à biodiversidade e
aos ecossistemas naturais, além dos riscos à saúde humana. São consideradas a
segunda maior causa de perda de biodiversidade, após as perda e degradação de
habitats.
Em virtude da agressividade e capacidade de excluir as
espécies nativas, diretamente ou pela competição por recursos, as espécies
exóticas invasoras apresentam o potencial de transformar a estrutura e a
composição dos ecossistemas, homogeneizando os ambientes e destruindo as
características peculiares que a biodiversidade local proporciona.
As espécies exóticas invasoras já contribuíram, desde o ano
1600, com 39% de todos os animais extintos, cujas causas são conhecidas (CDB).
Mais de 120 mil espécies exóticas de plantas, animais e microrganismos foram
introduzidas nos Estados Unidos da América, Reino Unido, Austrália, Índia,
África do Sul e Brasil (Pimentel et al., 2001).
Tendo em vista o número de espécies que já invadiram esses
seis países estudados, estima-se que um total aproximado de 480 mil espécies
exóticas já foram introduzidas nos diversos ecossistemas da Terra.
Aproximadamente 20 a 30% dessas espécies são consideradas pragas e são
responsáveis por grandes problemas ambientais. Isto indica o enorme desafio que
deverá ser enfrentado para o controle, monitoramento e erradicação das espécies
exóticas invasoras.
Os custos da prevenção, controle e erradicação de espécies
exóticas invasoras indicam que os danos para o meio ambiente e para a economia
são significativos. Neste contexto, levantamentos realizados nos Estados Unidos
da América, Reino Unido, Austrália, África do Sul, Índia e Brasil atestam que
as perdas econômicas anuais decorrentes das invasões biológicas nas culturas,
pastagens e nas áreas de florestas ultrapassa os 336 bilhões de dólares. Fonte:
Ministério do Meio Ambiente
Marcadores: Meio Ambiente