Doença ocupacional: Bombeiros enfrentando o câncer
Numa
tarde radiante da Nova Inglaterra, em julho passado, o bombeiro de Boston Glenn
Preston e seu filho de oito anos, Jake, contavam piadas no carro a caminho de
Fenway Park para assistir como todos os anos, pai e filho juntos, ao jogo dos
Red Sox. Quando subiram à autoestrada, o telefone de Preston começou a tocar.
Ao ver um número desconhecido na identificação de chamadas ele se preparou para
as más noticias.
Dois
dias antes, os médicos do Centro Médico Dana Faber em Boston tinham feito uma
biopsia duma massa do tamanho duma laranja extraída do peito de Preston. Para
não preocupar sua família, ele não tinha falado da biopsia com a esposa nem com
seus quatro filhos pequenos. Durante semanas ele se esforçou de esconder a
respiração superficial e o cansaço extremo quase constante. Ele não tinha
mencionado as dores no peito ou como às vezes, quando espirrava, sentia como se
lhe tivessem atirado um arpão no peito, caindo de joelhos.
Ele
respondeu à chamada. O médico disse a Preston que tinha câncer, que estava em
estado avançado, e que ele precisava ir imediatamente ao hospital. “Esta bem,
esta bem, olha agora estou a caminho de Fenway então talvez ponhamos a conversa
em dia mais tarde,” ele disse, fazendo crer a Jake que estava falando com um
velho amigo. Apesar de o médico tê-lo desaconselhado fortemente, Preston
manteve o carro rumo ao estádio. Ele e Jake ficaram durante todo o jogo e logo
foram comer uma pizza.
Uns dias
mais tarde, Preston deu entrada no hospital. Os médicos lhe disseram que tinha
um linfoma não-Hodgkin avançado, mas ele não queria falar de suas chances de
sobrevivência; ele não queria saber. Com imagens de seus filhos na cabeça, ele
estava indignado, mas não surpreendido.
“Desde o
ano 2000 estive numa brigada muito ativa, ia aos incêndios e saia dos edifícios
todo preto, com um aspecto terrível,” disse‑me e Preston pouco tempo atrás. “Eu
pensava que ia ter câncer – faz parte do trabalho. Só não pensava que seria
agora.”
SOPA
TÓXICA DE PRODUTOS QUÍMICOS CARCINÓGENOS
Com seu
diagnóstico, Preston ingressa na lista cada vez mais longa de bombeiros de
Boston doentes, envenenados ao longo de sua carreira por uma sopa tóxica de
produtos químicos carcinógenos absorvidos pelos seus pulmões, olhos, nariz e
pele. Em média, um bombeiro de Boston recebe um diagnóstico de câncer a cada
três semanas, de acordo com os dados registrados pelo corpo de Bombeiros de
Boston. Durante as últimas décadas a idade dos diagnósticos baixou de forma
contínua dos 60 aos 50 anos de idade e agora, cada vez mais aos 40 anos.
Preston tinha 39 anos quando recebeu o diagnóstico.
Essa
mesma realidade se verifica em todos os Corpos de Bombeiros do país. Os
bombeiros estão morrendo a um ritmo alarmante por causa de diferentes tipos de
câncer, incluindo câncer do cólon, dos pulmões, melanomas, mesotelioma,
próstata, reto, estômago, linfoma não-Hodgkin entre outros, os quais foram
demonstrados em estudos que afetam os bombeiros em maior proporção que o resto
da população.
DOENÇA
ESTÁ MATANDO MUITOS BOMBEIROS.
Embora
seja difícil conseguir números exatos, a doença está matando muitos bombeiros.
Sessenta por cento das mortes em serviço dos bombeiros entre 2002 e 2016
estavam relacionadas com o câncer, de acordo com a Associação Internacional dos
Bombeiros (IAFF, da sigla em inglês), que consegue os dados pelos relatórios do
sindicato local. Isso representa 1053 bombeiros que morreram durante aquele
período. Já que não existem registros definitivos, esse número é quase
seguramente apenas uma fração do total.
A falta
de dados confiáveis sobre as mortes de bombeiros causadas pelo câncer ilustra
até que ponto a questão não recebeu a devida atenção. Durante décadas, o câncer
que afeta os bombeiros foi discutido murmurando e sussurrando, considerado por
muitos como o preço a pagar para um trabalho perigoso, mas necessário. Mas
enquanto o número de mortes aumenta e a pesquisa revela mais dados sobre a
extensão do problema e suas causas, a preocupação silenciosa deixa lugar à
tomada de consciência e à mobilização total.
O câncer que afeta os bombeiros: estatística e fatos
Três estudos fundamentais sobre câncer entre os bombeiros realizados na ultima década mostraram níveis elevados
de certos tipos de câncer, comparados com a população em geral.
Em pelo menos dois desses estudos,
observou‑se um aumento significativo dos riscos num ou mais grupos de idade
estudados ou entre todos os bombeiros para os seguintes cânceres:
Cólon
|
Câncer
de pele não‑Melanoma
|
Pulmões
|
Próstata
|
Melanoma
|
Retal
|
Mesotelioma
|
Linfoma
não-Hodgkin
|
Melanoma
múltiplo
|
Estômago
|
Fonte: IAFF, Estudos “Cancer risk among firefighters: A review and
meta analyses of 32 studies” 2006.
■ 61% - mortes de bombeiros em serviço entre 2002 e
2016 causadas por câncer ocupacional, de acordo com a IAFF,
■ 190 - número de bombeiros de Boston que morreram de câncer
ocupacional desde 1990.
■ 1053 -
número de mortes de bombeiros em serviço registradas entre 2002 a 2016 de acordo
com a IAFF
■ 3
semanas de intervalo de tempo médio entre novos diagnósticos de câncer entre os
bombeiros do Corpo de Bombeiros de Boston
CULTURA
DA SAÚDE E SEGURANÇA NO CORPO DE BOMBEIROS DE BOSTON
“Lançamos
uma ofensiva geral, assegurando que fazemos todo o possível para proteger
nossos membros - eles nem sempre pensam nisso, só fazem seu trabalho, mas
devemos garantir que tenham consciência e treinamento,” disse Pat Morrison,
adjunto do Presidente geral para saúde, segurança e medicina da IAFF.
Não
podemos perder mais tempo disse Morrison. “A realidade é que o câncer é agora a
causa principal de morte de nossos membros e é provavelmente a questão mais
importante que estamos tentando resolver hoje”, ele disse. “É uma epidemia. A
tendência cresce e cresce.”
Em
nenhum lugar o esforço para combater o câncer foi tão agressivo – e de alguma
forma, tão improvável – como em Boston, onde o líder da ofensiva foi o Inspetor
de Incêndio Joseph Finn.
Ajudado
por um apoio financeiro de milhões de dólares da cidade e pelo trabalho
comprometido do presidente do sindicato Rich Paris, em apenas dois anos o corpo
de Bombeiros de Boston passou duma situação onde mal reconhecia o câncer como
um problema a ser considerado como um dos líderes mais avançados no país no
âmbito da saúde e bem-estar dos bombeiros.
Dirigida
por Finn, a abordagem de Boston para reduzir as mortes por câncer tem sido
multifacetada, mas todo aponta para o mesmo fim: limitar a exposição a produtos
químicos que causam câncer. “Metemos na cabeça de cada bombeiro, ‘não inale
fumaça’” me disse Finn. “Pense na fumaça como se fosse radioativa – cada vez
que você inala fumaça desnecessariamente está abreviando sua vida.”
À
diferença de outras mortes que se decidem num instante trágico, o câncer é
muitas vezes um assassino lento que floresce depois de anos de exposição aos
carcinógenos. Mas parece que o período de latência é cada vez mais breve, em
parte porque os bombeiros estão expostos hoje a mais elementos carcinógenos do
que nunca.
MATERIAIS
EM COMBUSTÃO DESCONHECIDOS
Cinquenta
anos atrás, a maior parte dos materiais queimados numa construção típica
incluía algodão, madeira e outros tecidos e produtos naturais – a inalação dos
produtos da combustão não era ideal, mas não era muito pior que uma fogueira de
acampamento, disse Finn. Hoje, quase todos os incêndios estruturais se parecem
mais com um evento HAZMAT – há muitos materiais
em combustão e ninguém pode saber ao certo que toxinas estão liberando.
O
conteúdo das casas modernas é uma miscelânea de plásticos, goma e equipamento
eletrônico, madeira, mobília e tecidos misturados com químicos retardantes de
chamas. Quando esses materiais queimam, os produtos da combustão incluem uma
variedade de substâncias com nomes agressivos – acrilonitrila, arsênico,
benzeno, hidrocarbonetos policíclicos, cádmio, clorofenol, cromo, monóxido de
carbono, dioxinas, óxido de etileno, formaldeído, orto‑toluidina, bifenilos
policlorados e cloreto de vinila, entre outros – confirmadas ou amplamente
consideradas como carcinógenas.
CONTAMINAÇÃO
Os
produtos químicos se introduzem no corpo humano através do nariz, dos ouvidos,
dos pulmões e da pele desprovidos de proteção. Eles se pegam como velcro a
qualquer coisa que tocam como a roupa de proteção, as luvas, as mangueiras e os
capacetes que podem liberar vapores perigosos durante dias, semanas e meses
após um incêndio. O equipamento sujo contamina o interior dos caminhões, das
cozinhas, dos armários e das camas.
Estudos
recentes que analisaram o conteúdo das bolsas dos aspiradores provenientes das
estações de bombeiros na Califórnia encontraram numerosos produtos químicos
retardantes de chamas espalhados nos alojamentos. Em algumas estações de
bombeiros, não é raro ver manchas de óleo flutuando na água da máquina de fazer
gelo depois dum corte de corrente.
Com a
contaminação onipresente, a proteção dos bombeiros contra o ataque mortal dos
produtos químicos é um desafio imenso e quatro anos atrás teria sido difícil
encontrar alguém acreditando que o Corpo de Bombeiros de Boston assumiria essa
tarefa tão difícil.
USO DO
APARELHO DE RESPIRAÇÃO AUTÔNOMA
Durante
anos, Boston Fire tinha a fama nacional bem merecida de ser teimoso, da velha
escola e indevidamente resistente à mudança, muitas vezes a custa de seus
membros. Em muitas companhias, o uso do aparelho de respiração autônoma (SCBA
da sigla em inglês) era opcional ou mesmo considerado como uma demonstração de
fraqueza. A liderança não parecia dar valor à proteção individual, e o machismo
dominante em tantos corpos de bombeiros, onde os devoradores de fumaça cobertos
de fuligem eram considerados como os mais intrépidos e formidáveis de todos os
bombeiros, era desenfreado nas estações de bombeiros de Boston.
“Tantas vezes quando participava de operações
de rescaldo (depois dum incêndio), eu via caras sem mascaras vomitando pela
janela por causa da fumaça, “contou o tenente Marty Fernandes, de 55 anos, que
tem amigos que morreram de câncer. “Eu sempre usava a mascara porque não me
sentia bem respirando aquela fumaça. Mas eu ouvia ‘Alo! Porque você está usando
a máscara?’ De fato existe um pressão dos colegas.”
“Eu
usava a máscara apenas quando pensava que era necessário,” disse Preston.
“Esperava até que não aguentava mais a fumaça, até tossir, sufocar e cuspir.
Nós fazíamos assim. Eu queria conservar o ar no caso de precisá-lo mais tarde,
ou guardá-lo para uma vítima que poderia precisá-lo no interior do edifício.”
Os
bombeiros diziam também que o equipamento de proteção praticamente não era
lavado, porque cada pessoa só tinha um conjunto bom e a empresa contratada para
a limpeza levava semanas para devolvê-lo, deixando os bombeiros com a escolha
entre um equipamento sujo ou nenhum equipamento. Dizia-se que os casacos
imundos largavam nuvens de pó preto que envolviam a estação, disse Preston. Ele
uma vez tentou lavar seu casaco coberto de fuligem numa lavanderia automática. Colocou-o
numa máquina e deixou-o e quando voltou para buscá-lo todo o local cheirava
como se estivesse em chamas.
Na raiz
de muitos desses problemas havia relações conflituosas entre os bombeiros de
Boston, a direção do Corpo de Bombeiros e a Prefeitura. Os choques relacionados com o financiamento,
junto com a falta de confiança, produziam um mau funcionamento generalizado. O
equipamento e os veículos de combate a incêndio eram velhos e num estado de
falta de manutenção, os freios dos caminhões falhavam e ficavam avariados
durante meses. Ao longo dos anos os investimentos na infraestrutura do corpo de
bombeiros foram escassos. É de notar que a estação de bombeiros típica de
Boston tem agora 76 anos. Com o corpo de bombeiros que estava meramente
tentando sobreviver, o câncer não estava na lista das prioridades.
EQUIPAMENTO
DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL
Em
Boston, o corpo de bombeiros adotou uma abordagem holística da batalha contra o
câncer, tentando limitar a exposição de seus membros de diferentes formas. “Não
existe uma solução milagrosa – é o efeito cumulativo da aplicação de uma série
de melhores práticas”, disse Finn.
Para
reduzir a exposição ao equipamento sujo, cada bombeiro de Boston foi equipado
de dois conjuntos de proteção individual para garantir que tivessem sempre um
conjunto limpo no início de cada turno. Com a ajuda de doações privadas, foram
instaladas máquinas de lavar industriais e varais para secar a roupa em quase
todas as 34 estações de bombeiros da cidade para remover a fuligem mortal
quando o equipamento volta do incêndio. A cidade está gastando milhões numa
limpeza industrial em cada estação de bombeiros, removendo décadas de fuligem,
resíduos do escape de diesel, benzeno e uma série de outros contaminantes dos
pisos, tetos, paredes e tapetes. Novas estações estão sendo planejadas e outras
foram renovadas para melhor separar os estacionamentos das áreas de alojamento.
Para
limitar a exposição no local do incêndio, a cidade gastou 4,5 milhões de
dólares para equipar os 1500 bombeiros de Boston com tanques de ar SCBA que têm
45 minutos de ar, um aumento de 50 por cento, para diminuir a probabilidade que
eles retirem suas máscaras para conservar o ar. O capuz de proteção usado
debaixo do capacete e da máscara para cobrir a cara e o pescoço, antes
desconhecido em Boston, é agora obrigatório. Além disso, foram comprados 23
novos veículos de combate a incêndio equipados com tanques de espuma de 30
galões, de forma que as equipes possam apagar incêndios de carros e contêineres
de lixo com a espuma desde uma distância segura para limitar sua exposição à
fumaça mortal.
A tática
de combate a incêndio também mudou aumentando a alternância das equipes,
limitando a exposição potencial de cada bombeiro. Os comandantes do incidente
agora realizam o monitoramento das condições do ar e é frequente ouvir pela
radio a contagem dos particulados e as instruções dadas a todos os bombeiros
para que fiquem com as máscaras colocadas. Um bombeiro sem máscara ou sem capuz
já não é tratado como um herói e não cumprir a ordem de usar o ar tem
consequências.
“Agora
todos aqui estão usando uma máscara e um capuz, e é nossa responsabilidade
fazer que isso aconteça,” disse Fernandes. “Se eu for visto por alguém sem o
capuz, vou ouvir falar nisso sempre. Joe Finn não está para brincadeiras.”
Finn
observa logo que todo o equipamento e os melhores procedimentos do mundo não significam
nada sem a adesão do pessoal e que as mudanças culturais necessárias para
atingir o objetivo requereram muito esforço e persistência.
DIVISÃO
DE SEGURANÇA, SAÚDE E BEM-ESTAR NO CORPO DE BOMBEIROS,
Uma das
primeiras ações de Finn como Inspetor de Incêndio foi criar uma Divisão de
Segurança, Saúde e Bem-estar no Corpo de Bombeiros, que formulou uma estratégia
dirigida ao esforço contra o câncer. Uma das primeiras tarefas da divisão foi
contratar uma equipe para produzir um vídeo cujos protagonistas são os
bombeiros de Boston vitimas do câncer, viúvas e famílias chorando e imagens
comovedoras dos bombeiros que Boston perdeu.
A ideia
do vídeo, lançado no início de 2015, era “pregar um susto terrível às pessoas,
e fazer-lhes ver que não se trata de nenhuma brincadeira,” disse Finn.
“Independentemente de quanta autoridade você use para impor as coisas, a
questão do câncer se reduz a responsabilidade pessoal mais do que qualquer
outra coisa. Se você entrando num
edifício em chamas pensa que é legal ser o cara que sai sujo e coberto de
fuligem, você deve pensar, ‘o que estou fazendo á minha família? Que
consequências tem para mim e para as pessoas que ficarão atrás quando eu
morrer? Esta é uma mensagem que precisamos manter sempre ativa”. Às vezes a
realidade fala por si só.
“Foi
exatamente ao contrario – eles entendem. Eles sabem do que estamos falando.
Eles enterraram demasiados amigos e viram o sofrimento humano das crianças e
das viúvas,” disse Finn. “O desafio é a nova geração – eles querem se afirmar e
se comportam como si estivessem aqui desde 1965. São os oficiais das companhias
que devem tomar posição e garantir que os bombeiros mais novos sigam as
melhores práticas. Fazendo seu trabalho de líderes eles vão salvar as vidas
desses jovens.” Fonte: NFPA Journal Latinoamericano – Set/2017
Marcadores: bombeiros, doença ocupacional

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