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quinta-feira, maio 28, 2009

Acidente de trabalho, morte e fatalismo

A criatividade do trabalhador para ativar o risco é imensurável. Sempre querendo quebrar protocolo de segurança ou queimar etapas de segurança. Se já fiz isso, não aconteceu nada, porque não posso fazer novamente? É a luta do diabinho com o anjo guarda de segurança. O diabinho sempre instigando o trabalhador para buscar o perigo. Como geralmente o perigo não é visível, o trabalhador se arrisca e percebe muito tarde o perigo visível, que é o acidente.
O trabalhador aceita passivamente a fatalidade. Ele reconhece que é predestinado a fatalidade. Para ele o acidente ou morte faz parte da vida.
Quantas vezes já ouvimos essas expressões ou crenças:
■ "Tinha que acontecer" quando se está diante de um evento trágico, ou no mínimo, indesejado.
■ Por que tinha que ser assim?
■ Em caso de morte, há sempre quem diga "cada um tem sua hora".
■ Frente a um assalto ou acidente, não soaria estranho se ouvíssemos que aquele indivíduo estava no lugar errado na hora errada, ou que era seu destino, mesmo que o tal lugar fosse visivelmente inseguro pelas próprias características.
■ Em outras palavras, o que tem que acontecer, simplesmente acontece e não há como escapar do fato.

Crenças como essas mostram que, muitas vezes, buscamos transferir a causa do acontecimento indesejado, motivo de sofrimento, a algo que está fora do nosso controle, de preferência bem distante de nós. É deste modo que o fatalismo ganha forma e expressão.

Os trabalhadores podem até desafiar o perigo e construir o que chama de "guarda-chuva defensivo" como mecanismo coletivo de proteção contra o medo. Esta é uma estratégia segundo a qual, diante de atividades reconhecidamente arriscadas, os trabalhadores tendem a desafiar o perigo se expondo a ele. Ao desafiarem o risco, eles teriam a sensação de dominá-lo.
Como o trabalhador já está acostumado com a adversidade da vida, o perigo faz parte dessa vida.
Atribuindo ao Criador do Mundo a responsabilidade sobre o trágico, de certo modo os trabalhadores encontram coragem necessária para lidarem com o perigo visível e o próprio medo da morte. Desta forma, mesmo que admitam que o trabalho é arriscado, o acidente só irá acontecer e a morte só poderá abater "se Deus quiser".

Mesmo que reconheçam a condição perigosa pela ausência de segurança oferecida pelas empresas, o acidente fatal acontece aos colegas porque "tinha que acontecer". Em outras palavras, a morte chegou porque já era seu momento. Para quem sofreu acidente grave e sobreviveu, o que aconteceu foi um grande susto: "Eu andei muito perto de morrer, mas acho que não chegou à hora ainda", diz um trabalhador. E se Deus permitiu que o acidente acontecesse, ao menos evitou que a tragédia fosse maior não subtraindo a vida: "Deus não quis que eu morresse".

Assim, saúde e doença, vida e morte são processos que se explicam pela intervenção de Deus ou do destino, mesmo que, muitas vezes, os próprios trabalhadores reconheçam que determinadas condições de vida e trabalho sejam fundamentais para a proteção da saúde e da vida, e que a ausência de uma política de segurança adequada nas empresas seja a grande responsável por acidentes e mortes. Esta dupla forma de racionalizar os eventos que atropelam a vida pode até parecer um tanto paradoxal. Um olhar mais atento, entretanto, poderá mostrar que se trata de uma visão bastante coerente da realidade. A geração de trabalhador ainda vem da área rural, desde criança passam por privações, adversidades, que moldam sua aceitação do perigo, sua rusticidade, etc.

Suas vida são geralmente marcadas por um conjunto de adversidades e certa intensidade de sofrimento, normalmente associado à determinada situação de vida na qual a precariedade e a incerteza são os mais fortes matizes. Iniciam-se no trabalho muito cedo, ainda na infância, e geralmente, em atividades consideradas muito penosas, como exemplo, trabalho no campo ou na roça, lutando contra fome e água, etc. Já adultos e, normalmente, com família constituída, o medo do desemprego, a baixa escolaridade e a falta de qualificação são geralmente os principais motivos para se submeterem ao trabalho nas condições que oferecem as empresas.

Fica claro que o trabalhador sabe que sua vida está em risco porque não há segurança efetiva das condições de trabalho. O binômio segurança-coragem se opõe à insegurança-medo, ambos percebidos como diretamente associados à situação objetiva, concreta de trabalho. Então, a busca de justificação dos acontecimentos através de Deus ou do destino não está relacionada, necessariamente, à causa imediata, mas à explicação última de porque acontece de um jeito e não de outro.

Como os trabalhadores aprenderam desde a infância que há uma espécie de ordem natural das coisas e que vêem na própria condição de vida e nas relações de mando e de exploração até mesmo uma determinada ordem divina, o acidente e a morte só poderiam ser, em última instância, determinados por Deus ou pelo próprio destino. É preciso dar sentido coerente e aceitável àquilo que percebem como inevitável e, deste modo, a visão fatalista dos acontecimentos atua, inclusive, no sentido de amortecer o medo e facilitar a aceitação do risco. Não fosse isso, voltar ao trabalho depois de ter sofrido algum acidente, ou até mesmo após presenciar a morte de um companheiro, seria uma tarefa ainda mais sofrida, senão impossível.

De certa forma, o fatalismo está associado a uma atitude de docilidade frente aos processos de obediência no trabalho e na vida. E o que é o caráter dócil senão a capacidade de aceitar facilmente o que se impõe ou sugere, o que se diz do trabalhador de "fácil trato", "para qualquer serviço"? Se é assim, é até esperado que trabalhadores que assumem este modo de agir não questionem de modo efetivo as condições objetivas que enfrentam no trabalho; pelo contrário, é possível mesmo imaginar sua aceitação por acharem que "a vida é assim mesmo". E se o fatalismo está na base da explicação e justificação de tudo o que acontece na vida dos indivíduos, então, ele tende a ser, por isto mesmo, um valioso instrumento nas mãos das empresas.

A aceitação do acidente por parte dos trabalhadores e também da sua morte como fruto do acaso, do desígnio de Deus ou do destino, pode, inclusive, colaborar para eximir as empresas da própria responsabilidade sobre as causas desses eventos. Obviamente que o trabalhador sabe que "trabalhar com segurança é trabalhar com coragem", ou seja, o risco de acidente seria menor em condições adequadas de trabalho.
Entretanto, ele também pensa que, mesmo em condições seguras, se o acidente tiver que ocorrer, simplesmente ocorrerá e a morte também, "porque eu estou vendo que vai acontecer". Diante disto, é até mesmo possível esperar atitudes passivas por parte dos trabalhadores frente o descaso das empresas em relação à segurança: por que e para que reivindicar e se indispor com os patrões, arriscando, inclusive, perder o próprio emprego, se, ao final, tudo o que acontece aos homens tem o peso da mão de Deus ou do destino? Quanto às empresas, se a visão fatalista pode contribuir para calar o trabalhador, por que elas, por iniciativa própria, adotariam políticas de segurança adequadas?

É também necessário que o trabalhador experimente uma nova condição de vida e trabalho para que, assim, possa começar a construir uma nova concepção de mundo na qual, entre outras coisas, as causas do que acontece de bom e mal na vida não seja atribuída a Deus ou ao destino, mas sim às ações, intencionais ou não, dos próprios indivíduos.

Obviamente, a morte, como evento natural intrínseco ao processo de viver, não está sob domínio humano, mas a morte prematura, aquela que furta a vida porque esta não está sendo vivida com a qualidade e o sentido que deveria ter, poderia, sim, estar sob algum controle dos homens.

Fonte: Adaptação do artigo, Acidente de trabalho, morte e fatalismo de Izabel Cristina Ferreira Borsoi - Universidade Federal do Ceará

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posted by ACCA@11:02 AM

1 Comments:

At 4:11 PM, Blogger Jair Closko said...

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