Zona de Risco

Acidentes, Desastres, Riscos, Ciência e Tecnologia

terça-feira, março 03, 2009

Um cenário sombrio

Velhos problemas não resolvidos e novos desafios da transformação tecnológica são obstáculos para a construção de uma política eficaz de saúde e segurança no trabalho

As reuniões de profissionais da área de saúde e segurança no Brasil, em geral, começam com as mesmas reflexões: não temos uma cultura de segurança, não temos políticas públicas organizadas para o tema, não temos dados confiáveis para baseá-las, mas sabemos que o número de acidentes de trabalho, de agravos à saúde relacionados ao trabalho, de tragédias individuais e sociais causados pelo e no trabalho são inaceitáveis.

Tudo isso é verdade e as razões deste panorama não são difíceis de perceber.

■ Em primeiro lugar a passagem do modo de produção predominantemente agrícola e familiar para o modelo industrial, baseado na divisão e controle do trabalho, se deu muito rapidamente. Hoje, esse modo de produção é amplamente predominante, inclusive no campo. As conseqüências dessa mudança rápida, em termos históricos, se refletem tanto nos ambientes de trabalho quanto nos próprios trabalhadores.
Ambientes de trabalho escuros, com máquinas e equipamentos perigosos, sem um mínimo de organização ou sistema de proteção mesmo que visando a preservação do próprio maquinário, ainda são comuns e não chocam ninguém. Por sua vez, trabalhadores que não têm uma tradição de reivindicação e de auto-organização para defesa de seus interesses coletivos e, por outro lado, com ampla experiência de relações sociais e de trabalho extremamente autoritárias, acabam por criar estratégias defensivas baseadas na negação do risco, aumentando a resistência em aceitar proteções individuais ou coletivas, ainda mais se essas implicam diminuição de sua performance no trabalho.

■ Em segundo lugar, em países de capitalismo periférico, como é o nosso caso, a valorização do trabalho só é comparável ao desvalor atribuído ao trabalhador, principalmente durante os sucessivos períodos de crises econômicas que aumentam o já enorme exército de reserva, constituído por milhares de desempregados e subempregados, dispostos a aceitar quaisquer condições para manter um trabalho remunerado regular.
Mais recentemente, o grau de degradação e violência nas periferias das cidades (não só as grandes) contribui de maneira significativa para a construção de uma percepção de banalidade da vida, cujo reflexo no mundo do trabalho é a consideração de que sistemas de proteção são caros e um exagero de zelo.

Subnotificação e informalidade
Nesse contexto, torna-se difícil delimitar o que são os principais problemas de segurança e saúde do trabalhador brasileiro. Quase sempre, só são registrados os acidentes graves que levam a afastamento do trabalho por mais de 15 dias. No caso das doenças profissionais e do trabalho a subnotificação é a regra, já que na maioria das vezes, sequer são diagnosticadas. Os dados dão conta apenas de uma parte dos trabalhadores, aqueles que se encontram no mercado formal de trabalho, constituindo o universo de segurados do Instituto Nacional da Seguridade Social.

Contudo, parte expressiva dos trabalhadores está no mundo do trabalho informal. À margem dos benefícios previdenciários e, portanto, sem análise de seu perfil de morbimortalidade a partir do trabalho. Nesse mundo, muitas vezes, trabalho informal é também trabalho ilegal e vai empregar uma mão-de-obra não aceita na formalidade, como jovens e crianças que acabam por ter o pior tipo de iniciação, consolidando uma visão distorcida do trabalho, na qual ganhar a vida implica aceitar o risco de perdê-la.

Na minha opinião, portanto, o principal problema de segurança e saúde no trabalho (SST) no Brasil é a absoluta falta de consciência quanto ao que venha ser trabalho seguro e saudável e o conseqüente descaso com a questão. De qualquer ângulo que se aborde o tema, seja do ponto de vista do trabalhador, do empregador ou do próprio Estado, o investimento em SST é considerado secundário.

Com o fenômeno da globalização econômica, instituindo concorrência entre trabalhadores dos diversos cantos do mundo e enfraquecimento do movimento sindical (que anda meio perdido diante da ameaça de transferência de empresas para regiões onde o trabalho é ainda mais barato), as reivindicações referentes às questões de SST, se não desapareceram dos Acordos Coletivos, permanecem como figuração. Negociam-se questões já resolvidas na legislação ou pequenas variações em torno do mesmo tema, nada que possa implicar tomadas de posição no sentido da construção de políticas de segurança, com a participação de trabalhadores.

Falta política de segurança
Para os empregadores, é uma questão de custo operacional. Empresas maiores, geralmente, incluem em seus orçamentos gastos com proteções de máquinas, equipamentos de proteção individual (EPI), elaboração e manutenção de programas obrigatórios pela legislação, como PCMSO - Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional e PPRA – Programa de Prevenção aos Riscos Ambientais.

Mas são raras as exceções de construção de uma política de segurança própria, pró-ativa e capaz de envolver o trabalhador ao invés de simplesmente obrigá-lo a seguir regras sem muita reflexão sobre o assunto. Em geral, trata-se de cumprir a lei. Nas pequenas e médias empresas o conflito é bem maior. Nessas, segurança e saúde do trabalhador costuma se resumir à compra de equipamentos de proteção individual de péssima qualidade e, muitas vezes, inadequados e realização de exames médicos malfeitos e descontextualizados.

Longe de aumentar o controle sobre a saúde dos empregados e dos riscos nos ambientes em que trabalham, esses exames costumam servir apenas para efeitos burocráticos, atender às exigências da fiscalização, comprovação de cumprimento legal perante a justiça etc.

Já as organizações e instituições do Estado envolvidas no tema debatem-se entre um discurso e uma prática desvinculados e uma eterna disputa de competências. No Ministério do Trabalho e Emprego, responsável pela regulamentação e fiscalização dos ambientes e condições de trabalho, o principal problema ainda é um conflito de identidade. Há muito já superamos o entendimento de que nosso papel se resume à resolução de problemas pontuais em fiscalizações
pontuais. Há muito é hegemônica, entre os auditores fiscais do trabalho especializados em saúde e segurança no trabalho, uma visão de que nosso papel pode ser muito mais transformador se praticarmos a fiscalização do trabalho de maneira planejada, com objetivos definidos previamente e com a participação dos diversos atores sociais envolvidos.
Essa passagem do fiscal solitário para um agente de transformação social que usa suas ferramentas de trabalho, inclusive os recursos legais da multa, da notificação, da mediação e outras típicas da função, em ações envolvendo organizações de trabalhadores e empregadores ou grupos de empregadores e empregados de um mesmo ramo ou atividade ou ainda com o mesmo tipo de problema; reflete-se na organização de grupos e programas especiais de trabalho
e nas comissões tripartites para introduzir mudanças na legislação, entre outras ações. No entanto, o desenvolvimento dessas práticas é tolhido pelo modelo de controle e avaliação do trabalho do auditor fiscal, ainda baseado na produtividade individual e quantidade de fiscalizações realizadas.

Diálogo insuficiente
Outro grave problema que aparece como entrave à construção de políticas públicas de saúde e segurança no trabalho é falta de diálogo e mesmo o conflito de interesses entre as diversas instituições e níveis governamentais ligados à questão. A fiscalização não tem nenhum mecanismo formal de diálogo com a Previdência Social que, por sua vez, foca sua ação na questão da concessão ou negação de benefícios ao segurado individual, não analisando a relação entre o problema de saúde apresentado (seja doença ou acidente) e os ambientes de trabalho. Sem menosprezar a necessidade do atendimento individual, é preciso ter em mente que a particularização do problema pode gerar e gera enganos tanto na concessão quanto na negação desses benefícios e, principalmente, na caracterização da relação de causalidade entre os problemas apresentados pelo trabalhador/segurado e o trabalho.
E temos também o Sistema Único de Saúde (SUS), a quem cabe, conforme a legislação, a atenção à saúde do trabalhador desde a proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas.
Com tantas questões mais imediatas e prementes a resolver, o SUS ainda não tem organizado sua ação em SST.
Alguns municípios até chegaram a criar Centros de Referência em Saúde do Trabalhador que resistem bravamente graças, principalmente, ao engajamento de seus profissionais, mas ainda isolados do restante da rede, pouco equipados e sem grande expressão no mundo do trabalho.
É neste cenário sombrio que enfrentamos não só o quadro de acidentes de trabalho e doenças profissionais já conhecido como outro, apenas suspeitado, advindo da rápida transformação de tecnologias de produção e organização do trabalho.

Qual é o resultado do processo de terceirização do trabalho na preservação da saúde e vida do trabalhador?

A agroindústria canavieira está levando os colhedores de cana de açúcar à morte por exaustão? E todos esses novos produtos e processos químicos e físicos introduzidos nos ambientes de trabalho, que repercussão têm trazido? Essas e outras questões semelhantes permanecem sem resposta. E se não temos conseguido sequer responder de maneira coerente e integrada aos velhos problemas, dificilmente conseguiremos compreender e atuar sobre os novos.

Fonte: Consuelo Generoso Coelho de Lima - Médica do trabalho e auditora fiscal do trabalho.

Comentário:
O grande problema do Ministério do Trabalho é definir a função do auditor? Seria um auditor com finalidade previdenciária, o que prevalece atualmente ou um auditor especialista em engenharia de segurança do trabalho? Outro item importante do auditor do Ministério do Trabalho, ele não tem procedimento padrão ou normas internas quanto à definição de critério de segurança quanto às normas. Cada auditor tem sua concepção e visão de definição de alguns quesitos das normas, o que contraria a finalidade de uma auditoria padrão, que deve seguir e adotar normas e procedimentos padrões aprovadas pelo órgão (Ministério do Trabalho).
Não existem os guidelines de segurança que são protocolos de condutas que visam melhorar a qualidade da aplicabilidade das normas de segurança. São criados a partir de um consenso entre profissionais, das áreas de pesquisas e experiências práticas. Eles possibilitam a uniformização das práticas adotadas de normas de segurança.

A norma atual é mais rigorosa e complexa, mas na prática ela não está surtindo o efeito desejável, pois permanece elevado o número de acidentes.
Segundo estudos de especialistas esse problema reflete em:
■ o avanço do desenvolvimento da cultura de segurança é muito lento, os trabalhadores são inertes às campanhas de segurança;
■ é difícil para os trabalhadores trabalhar seguramente se não existe a cultura de segurança na organização;
■ as campanhas de segurança geralmente resumem-se a um slogan, o rumo para alcançar a segurança permanece obscuro e remoto para muitos empregados e empregadores;
■ as pequenas empresas não tem recursos suficiente para implantar gerenciamento de segurança, embora estas tenham um importante papel como empreiteiras no sistema da construção;
■ os efeitos do treinamento são mínimos no sistema de sub-contratação, pois promover treinamentos de orientação ou dos trabalhadores em serviço não é tarefa fácil, porque muitos deles não são empregados diretos da empresa;
■ existe falta de treinamento e experiência dos “profissionais de segurança” no gerenciamento da segurança;
■ existem concepções erradas da segurança, tipo o uso de EPI’s para a resolução de problemas.

A legislação está preocupada na implementação de regras de segurança, principalmente no que se refere às condições físicas de trabalho. Porém, o Ministério do Trabalho está simplesmente preocupado na fiscalização e penalização do empregador por violar a legislação. Essa mentalidade de fiscalizar e penalizar não cria condições a longo prazo para construir uma cultura de segurança entre os empregadores e trabalhadores.
Os programas das Normas de Segurança induzem que os riscos são segmentados. O que vemos são laudos e programas distribuídos em diversos relatórios, sem nenhuma interligação entre eles para efetuar a gestão de segurança.
Concluindo, o grande erro nas normas de segurança é que não existe ênfase no desempenho e conduta segura. Partem do princípio que implantando as normas todos os problemas serão resolvidos. Esse é o cenário do filme brasileiro chamado “Trabalho”, os atores são quase os mesmos (governo, empresa, empregado, sindicato), o enredo é sempre atualizado (normas) e o resultado é sempre o mesmo, acidentes e fatalidades. O Brasil está sempre fazendo do filme “Trabalho”, um remake.

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posted by ACCA@10:45 PM