ESCALPELAMENTO: A TRAGÉDIA QUE SEGUE ASSOLANDO RIBEIRINHOS
Por trás da adoção generalizada
de barcos como transporte pelas comunidades ribeirinhas na Amazônia, está um
acidente que marca toda uma vida. No Pará, centenas de pessoas foram vítimas
nas últimas décadas do chamado escalpelamento.
Por décadas, a ocorrência do
escalpelamento foi esquecida, e o amparo a quem sofreu os acidentes dependeu da
boa vontade de médicos que organizavam mutirões voluntários para realização de
cirurgias. Desde 2010, 28 de agosto passou a ser o Dia Nacional de Combate e
Prevenção ao Escalpelamento. Desde então, medidas para combater o problema, em
especial a fiscalização para que motores dos barcos não operem descobertos, são
apontadas como responsáveis por uma queda no número de casos.
Um estudo de janeiro de 2024
feito pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa)
contabilizou 483 ocorrências de escalpelamento no Pará entre os anos 1960 e
2022. O maior número de casos (22) foi registrado em 2009. Dentre as vítimas,
98% são mulheres, com uma predominância de 67% entre crianças e adolescentes de
2 a 18 anos de idade.
Em menor grau, Amapá e
Amazonas são outros estados afetados pelo problema. Com dificuldade na
notificação já que os registros não são obrigatórios, há ampla visão de que os
números são subnotificados.
"MUDA A NOSSA VIDA"
Raíza Oliveira, hoje com 23
anos, sofreu escalpelamento quando tinha apenas oito anos de idade. "A
partir do momento que sofremos o acidente, muda a nossa vida".Moradora
ribeirinha do interior do Pará, ela tem de se deslocar para Belém para realizar
os tratamentos na Santa Casa de Misericórdia. Cada trecho da viagem, feita às
vezes duas vezes por mês, dura quase um dia.
Além das cirurgias iniciais
de reconstrução plástica, as vítimas demandam amplo apoio psicológico e outros
acompanhamentos, como das funções neurológicas e auditivas, muitas vezes
comprometidas no acidente.
"A retomada da
autoestima é muito difícil, são sequelas por toda a vida. Há uma tentativa de
acolher as vítimas, mas é complicado haver uma reconstrução total. O impacto
nestas pessoas é muito significativo, afetando inclusive questões
emocionais", afirma Flávia Lemos, professora de Psicologia Social da
Universidade Federal do Pará (UFPA).
VÍTIMAS COMO CULPADAS
Uma queixa constante no meio
é um tipo de visão que tende a culpar as vítimas pelos acidentes. Especialistas
apontam que é constante a postura das populações locais que responsabiliza as
jovens por supostamente não se cuidarem. Neste sentido, o julgamento reduz o
impulso para que estas pessoas reivindiquem seus direitos e busquem novas
reparações.
"Nós começamos mais
tímidas, já que as pessoas falam que é nossa a responsabilidade pelo
acidente", conta Oliveira. Engajada no tema, a jovem observa que a
mobilização melhorou nos últimos anos, com muitas vítimas se articulando
através de redes sociais para trocar informações e fortalecer a causa em prol
de suas demandas.
"O conhecimento sobre os
acidentes melhorou, vemos isso como uma conscientização. Há dez, 15 anos, tudo
era mais difícil. Mesmo assim, ainda se culpa muito as vítimas, e há certo
preconceito com as ribeirinhas", conta.
Na visão de Lemos, o fato de
o escalpelamento normalmente ser causado por um cabelo grande e solto acaba
contribuindo para uma maior culpabilização das vítimas, uma vez que há visão de
que houve desleixo por parte das envolvidas.
ACOMPANHAMENTO CONSTANTE
Oliveira frequenta o Espaço
Acolher na Santa Casa de Belém, que virou uma grande referência estadual no
atendimento às vítimas de escalpelamento e no acompanhamento posterior aos
cuidados iniciais. Criado em 2006, o núcleo faz parte do Programa de
Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento (Paives), uma iniciativa do
Pará para concentrar as vítimas e padronizar o atendimento.
Jureuda Guerra, psicóloga
hospitalar que atende no Acolher, lembra que, entre a década de 1960 e o começo
dos anos 2000 não havia protocolo de atendimento nos casos de escalpelamento.
Como resultado, vítimas deixavam por vezes de realizar exames importantes, como
ressonância magnética e tomografia craniana. Hoje, a partir do atendimento
inicial nas unidades mais próximas de saúde, há um encaminhamento à Santa Casa.
Por sua vez, em um estado em
que o tempo percorrido até a capital partindo de zonas ribeirinhas pode chegar
facilmente a dois dias, o deslocamento para seguir com os tratamentos é um
grande desafio. "Tenho casos de crianças que não vem há mais de três anos,
e seguem perdendo as consultas", conta Guerra.
Os pacientes dependem do chamado
TFD – Tratamento Fora de Domicílio, custeio para o deslocamento que é de
responsabilidade dos munícipios. No entanto, a psicóloga afirma que muitas
prefeituras não repassam os valores às vítimas e criam impedimentos para a
viagem à capital.
Mesmo depois de adultos, as
pacientes costumam seguir dependendo de acompanhantes para realizar os
deslocamentos, tornando a viagem mais complicada. Durante o trajeto, as vítimas
podem ter crises de encefaleia, que podem, por exemplo, ocasionar em desmaios
ou situações mais graves.
Sobre a viabilidade de realizar tratamentos mais próximos às regiões ribeirinhas, Guerra é cética e não crê que é uma alternativa, uma vez que as unidades locais não oferecem a mesma estrutura presente na capital. Fonte: DW - quinta-feira, 28 de agosto de 2025
Marcadores: acidente

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