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terça-feira, janeiro 05, 2010

Computadores europeus envenenam crianças na África

Os cidadãos do Ocidente jogam fora milhões de computadores velhos todos os anos. Centenas de milhares deles acabam na África, onde as crianças procuram ganhar a vida vendendo peças velhas das máquinas. Mas os elementos tóxicos presentes no lixo as estão envenenando lentamente.

Segundo a Bíblia, Deus lançou uma chuva de fogo e enxofre para destruir as cidades de Sodoma e Gomorra. E as autoridades governamentais de Accra, em Gana, também passaram a chamar de "Sodoma e Gomorra" uma parte da cidade afetada por produtos tóxicos de um tipo que os moradores das cidades bíblicas jamais poderiam imaginar. Ninguém vai a esse local, a menos que isso seja absolutamente necessário.

Fumaça ácida e negra
Uma fumaça ácida e negra passa sobre os barracos da favela. As águas do rio também são pretas e viscosas como óleo usado. Elas carregam gabinetes de computador vazios para o oceano. Nas margens do rio veem-se fogueiras alimentadas por isopor e pedaços de plástico. As chamas consomem o material plástico de cabos, conectores e placas-mãe, deixando intactos apenas o metal.
Hoje há um vento que faz com que a fumaça dessas fogueiras infernais passem lentamente por sobre a terra. Respirar muito profundamente é doloroso para os pulmões, e as pessoas que alimentam as fogueiras às vezes dão a impressão de serem apenas silhuetas vagas e enevoadas.
Uma figura pequena e curvada caminha entre as fogueiras. Com uma mão, o garoto arrasta um alto-falante velho pela terra e as cinzas, puxando-o por um fio. Com a outra mão ele segura firmemente uma bolsa.
O alto-falante e a bolsa são as únicas posses do garoto, além da camiseta e as calças que ele usa. Ele tem um nome incomum: Bismarck. O garoto tem 14 anos, mas é pequeno para a idade. Bismarck vasculha a terra em busca de qualquer coisa que os garotos mais velhos possam ter deixado para trás após queimarem uma pilha de computadores. Podem ser pedaços de cabo de cobre, o motor de um disco rígido, ou peças velhas de alumínio. Os ímãs do seu alto-falante também capturam parafusos ou conectores de aço.
Bismarck joga tudo o que encontra dentro da bolsa. Quando a bolsa estiver cheia até a metade, ele poderá vender o metal e comprar um pouco de arroz, e talvez também um tomate, ou até mesmo uma coxa de galinha grelhada em uma fogueira acesa dentro do aro de um carro velho. Mas o garoto diz que hoje ainda não encontrou o suficiente. Ele desaparece novamente na fumaça.

O refugo da era da internet -
Esta área próxima a Sodoma e Gomorra é o destino final dos computadores velhos e outros produtos eletrônicos descartados de todo o mundo. Há muitos lugares como este, não só em Gana, mas também em países como Nigéria, Vietnã, Índia, China e Filipinas. Bismarck é apenas um de talvez uma centena de crianças daqui, e de milhares do mundo inteiro.

Essas crianças vivem em meio ao refugo da era da internet, e muitas delas podem morrer por causa disso. Elas desmancham computadores, quebrando telas com pedras, e a seguir jogam as peças eletrônicas internas em fogueiras. Computadores contêm grandes quantidades de metais pesados e, à medida que o plástico é queimado, as crianças inalam também fumaça cancerígena. Os computadores dos ricos estão envenenando os filhos dos pobres.

Lixo eletrônico - 50 milhões de toneladas
A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que até 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico são jogadas anualmente no lixo em todo o mundo. O custo para se reciclar apropriadamente um velho monitor CRT na Alemanha é de 3,50 euros (US$ 5,30 ou R$ 9,20). Mas o envio do mesmo monitor para Gana em um contêiner de navio custa apenas 1,50 euro (R$ 3,80).

Convenção de Basiléia - tratado de papel
Um tratado internacional, a Convenção de Basileia, entrou em vigor em 1989. O tratado baseia-se em um conceito justo, proibindo os países desenvolvidos de enviarem computadores que foram para o lixo aos países subdesenvolvidos. Até o momento 172 países assinaram a convenção, mas três deles ainda não a ratificaram: Haiti, Afeganistão e Estados Unidos. Segundo estimativas da Agência de Proteção Ambiental norte-americana, cerca de 40 milhões de computadores são descartados todos os anos somente nos Estados Unidos.
Diretrizes da União Europeia com acrônimos como WEEE (sigla em inglês de Lixo de Equipamentos Elétricos e Eletrônicos) e RoHS (Restrição a Substâncias Perigosas) seguiram-se à Convenção de Basileia, e países individuais transformaram-na em lei. As leis relativas à administração de lixo na Alemanha estão entre as mais estritas do mundo, e neste país o envio de computadores descartados a Gana pode dar cadeia. Em tese.

Um negócio milionário
Recentemente o governo alemão mobilizou-se para verificar como é a situação na prática. Especialistas da Agência Federal do Meio Ambiente alemã ainda estão redigindo um relatório que será divulgado nas próximas semanas, mas as conclusões já são conhecidas - há sérias brechas no sistema de reciclagem do país. Segundo o estudo, firmas de exportação da Alemanha enviam 100 mil toneladas de aparelhos elétricos descartados a cada ano para os países subdesenvolvidos, o que é bem mais do que os especialistas temiam.
"Este é um negócio milionário. Não se trata de algo que possa ser classificado como crime pequeno", afirma Knut Sander, do instituto ambiental Ökopol, com sede em Hamburgo. Ele foi o autor do estudo, que exigiu meses de pesquisas. Por causa das suas investigações ele recebeu avisos de que deveria tomar cuidado com a sua segurança.
Ele não teve que ir longe do seu escritório para observar a atividade dessa indústria de exportação. "O Porto de Hamburgo é importante", explica Sander. "Aquilo que não sai por Hamburgo é embarcado em Antuérpia ou Roterdã."
Sander descobriu negociantes pequenos que enviam contêineres esporádicos ou alguns carros velhos cheios de computadores. Às vezes há centenas desses carros no terminal de O'Swaldkai, em Hamburgo, de onde os navios saem para a África.

Remarketing disfarçado
Há também grandes empresas enviando cargas de lixo tóxico - as chamadas companhias de remarketing, que coletam centenas de milhares de eletrodomésticos velhos todos os anos. Essas companhias têm autorização para revender computadores que estejam funcionando, mas são obrigadas a reciclar as máquinas defeituosas. E algumas delas sabem muito bem quanto dinheiro podem economizar enviando esses computadores inúteis para Gana.
A tarefa de deter essa exportação de lixo deveria ficar a cargo de uns poucos funcionários da alfândega e da guarda portuária. Mas quando os agentes ocasionalmente abrem um contêiner, eles estão provavelmente pedindo para ter dores de cabeça nos tribunais. As leis não definem o que seja um computador descartado, e é legal exportar computadores usados. Só não se pode exportar as máquinas descartadas. Um computador que está quebrado, mas que talvez ainda pudesse ser consertado, pode ser considerado lixo? E quanto a um computador de 20 anos de idade, que não consegue mais rodar um único programa? Quando há dúvidas, os juízes dão ganho de causa aos exportadores.

Entrando no inferno
Bismarck só sabe que todos os computadores exalam mau-cheiro, tenham eles dez ou 20 anos de idade, e não importando se sejam fabricados pela Dell, a Apple, a IBM ou a Siemens. Quando eles queimam, a fumaça faz com que a sua cabeça e garganta doam. As cinzas pegajosas grudam em cada poro e ruga, e provocam coceiras. Manchas aparecem na pele de Bismarck, mas ele sabe que não pode coçá-las porque a poeira tóxica entraria nas feridas abertas.

Um euro por dia
Bismarck aprendeu as regras rapidamente. Existe uma hierarquia, e todo garoto pode tentar galgar essa estrutura. Os homens jovens, de cerca de 25 anos de idade, controlam as grandes balanças de ferro velho que ficam com frequências nos locais onde se podem ver marcas de pneus na cinza que cobre a terra. Quando a sacola de Bismarck fica cheia até a metade após um dia perambulando em torno das fogueiras, ele pode vender o material recolhido para esses homens por cerca de dois cedis ganenses, o equivalente a cerca de um euro ou US$ 1,50 (R$ 2,60).
Aqueles que são um pouco mais novos, com cerca de 18 anos de idade, possuem carrinhos de mão feitos com tábuas e eixos de carros velhos. Eles seguem para a cidade no início da manhã para coletarem computadores dos importadores de refugo e trazem o material de volta para a favela. Eles quebram os computadores e retiram os cabos, e depois jogam o que restou nas fogueiras ou vendem esse resíduos para garotos um pouco mais novos.
São principalmente esses garotos que carregam os montes de cabos plástico para serem queimados nas fogueiras.

Encolhendo o cérebro - substâncias tóxicas
Um grupo de indivíduos brancos veio até à área de ferro velho, o que é raro. Eles eram do Greenpeace. Um homem usava luvas e carregava pequenos tubos de ensaio. Ele coletou amostras da lama de um dos lagos formados pelo rio, e depois cinza e solo de vários locais diferentes na área.
O químico analisou as amostras quando voltou para casa, na Inglaterra, e os valores que obteve não foram bons. Ele descobriu concentrações elevadas de chumbo, cádmio e arsênico, bem como de dioxinas, furanos e bifenis policlorados.
O chumbo, para tomar como exemplo apenas um dos produtos químicos perigosos, provoca dores de cabeça e estomacais após uma breve exposição. No longo prazo, ele danifica o sistema nervoso, os rins, o sangue e especialmente o cérebro. Quando uma criança ingere chumbo através da água ou por inalação, o seu cérebro encolhe ligeiramente e a sua inteligência diminui. Cientistas da Alemanha ficam preocupados quando descobrem concentrações acima de um limite de 0,5 miligramas de pó de chumbo por metro cúbico de ar. O tubo de raios catódicos de um único monitor de computador contém cerca de 1,5 quilograma de chumbo. Muitas das outras substâncias encontradas pelos químicos no local também provocam câncer, entre outras doenças.

Contra-atacando
Mike Anane, um ativista ambiental e coordenador local da organização internacional de direitos humanos FIAN, trouxe os membros do Greenpeace para cá. Anane nasceu aqui há 46 anos, bem ao lado de onde hoje em dia se situa Agbogbloshie. Naquela época, as margens dos rios eram repletas de prados verdes e de flamingos, e os pescadores tiravam o seu sustento do rio. Agora não existe vida nessas águas.
Oito anos atrás, Anane começou a perceber a chegada de uma quantidade cada vez maior de caminhões em Agbogbloshie, com as carrocerias repletas de computadores. Ele observou a situação de perto e passou a contra-atacar aquilo que viu. Anane coleta adesivos de procedência de vários computadores descartados para descobrir de quem são os venenos queimados aqui. Ele possui adesivos do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, de autoridades britânicas e de companhias como o Banco Barclays e a British Telecom. "Algumas crianças daqui não chegarão aos 25 anos de idade", acredita Anane.

Ele sabe, porém, que as companhias e organizações cujos selos chegam aqui juntamente com os equipamentos descartados não são os agentes que de fato trazem esse lixo para o seu país. As pessoas diretamente envolvidas são comerciantes, como Michael Ninicyi, diretor da Kofi Enterprise. A Kofi Enterprise é uma pequena loja repleta de computadores.

"Este negócio é bom para Gana"
Ninicyi compra os seus produtos exclusivamente de navios de contêineres provenientes de Hamburgo. "Os alemães simplesmente tomam mais cuidado com os seus equipamentos do que qualquer outro povo", explica. Ele não quer dizer exatamente quem são os vendedores. Ninicyi compra os produtos sem examiná-los, algo que é comum nesta atividade. Como parte dos seus cálculos de custos, os vendedores alemães fazem com que em cada contêiner haja alguns equipamentos que funcionem, bem como alguns que ainda podem ser consertados. O restante, cerca de 30%, é lixo, que Ninicyi repassa imediatamente aos garotos que vêm de Agbogbloshie com os seus carrinhos da mão. Contêineres vindos do Reino Unido trazem uma proporção muito maior de lixo.
"Este negócio é bom para Gana e para os outros países", assegura Ninicyi. Ele diz que sente pelas crianças, mas afirma que paga impostos, e os seus fregueses também e que o povo de Gana tem acesso a computadores de preço acessível.

"Por que vocês não interrompem o fluxo de lixo?"
"Esse processo está cada vez mais rápido, e nós estamos sendo esmagados", queixa-se John Pwamang, diretor do Centro de Gerenciamento e Controle de Produtos Químicos da Agência de Proteção Ambiental de Gana. A agência está localizada em um prédio de concreto em péssimas condições. A caminho do escritório de Pwamang, os visitantes precisam subir primeiro uma escada que no passado deve ter sido verde, e a seguir passar por um banheiro com defeito e uma sala de conferência de cortinas marrons esfarrapadas. Na sala há três depósitos de lixo - um marrom, para papel, um cinza, para plástico, e um outro marrom para tudo mais. Entretanto, o país não conta com um sistema de reciclagem de lixo em funcionamento. Ao que parece a agência de Pwamang ainda tem alguns problemas pela frente.
Os olhos de Pwamang são pouco visíveis por trás das grossas lentes bifocais. Ele fala suavemente, o que o ajuda a parecer mais tranquilo do que realmente é. "Vocês europeus não mudam", reclama ele. "O que deveríamos fazer com os produtos tóxicos que vocês nos mandam? Não temos como reciclá-los. Vocês possuem as instalações para isso. Computadores que funcionam não são nenhum problema, mas muitas das máquinas velhas demais não duram nem um ano aqui. Por que vocês não interrompem o fluxo de lixo?".
Pwamang não tem como provar que o chumbo e as dioxinas estão matando as crianças. Quase ninguém com mais de 25 anos trabalha nas fogueiras às margens do rio de águas pretas. E não existe estudo algum sobre o problema. O Greenpeace identificou e quantificou as toxinas, mas a organização não examinou os efeitos diretos delas. "As crianças estão doentes", afirma Pwamang. "Temos aqui metais pesados e venenos. Um estudo seria bom, mas mesmo sem nenhum estudo eu sei que a situação é desastrosa."

Fonte: UOL Noticias - Der Spiegel - 05 de dezembro de 2009

Vídeo
Mostra jovens catadores de lixo eletrônico em Gana.


Comentário:
Hoje comenta-se muito a ética ambiental. Seria mais uma jogada de marketing ambiental? Para que as empresas permaneçam em evidências em setores que influenciam a sociedade.
A ética ambiental define-se como estudo da conduta comportamental do ser humano em relação à natureza, decorrente da conscientização ambiental e conseqüente compromisso preservacionista, tendo como objetivo a conservação da vida global. Mas na prática o que acontece com o lixo eletrônico das nações industrializadas? A maioria é despachada como pretexto de produto reutilizável, mas com destino algum lixão de alguma nação pobre.
O lixo eletroeletrônico é composto de milhares de substâncias, muitas dessas tóxicas aos seres humanos e ao meio ambiente. A composição desse lixo é variável e contém: arsênico nos microchips; cádmio nas placas de circuito integrado, nos tubos CRT e nas baterias; cromo utilizado como anticorrosivo; mercúrio nas TVs de tela plana, baterias e comutadores; PCBs nos capacitores e transformadores mais antigos; chumbo nos tubos de raios catódicos; cobre nos circuitos elétricos, entre outros.
Estima que nos Estados Unidos terão nos próximos anos mais de 500 milhões de computadores obsoletos e já possuíam em 2005 mais de 130 milhões de celulares. No Japão, a situação não é menos alarmante, a expectativa é de que, até o ano de 2010, os japoneses já terão descartado mais de 650 milhões de celulares. Na comunidade européia, estima-se que cada cidadão gere em média 25 quilos por ano de lixo eletroeletrônico
Para se ter uma idéia do potencial danoso de 500 milhões de computadores, eles resultam aproximadamente nas seguintes quantidades de resíduos sólidos:
■ três milhões de toneladas de plásticos;
■ 700 mil toneladas de chumbo;
■ 1.300 toneladas de cádmio;
■ 855 toneladas de cromo; e 285 toneladas de mercúrio.
A destinação desse e-lixo pode ser: armazenamento; reuso; reciclagem; dispostos em aterros; incinerados ou exportados para os países pobres.

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posted by ACCA@11:17 PM

2 Comments:

At 11:33 PM, Blogger Jackson Rubem said...

É impressionante a quantidade de danos causados pelos 500 milhões de computadores, conforme citado neste post, entre os quais resíduos sólidos: três milhões de toneladas de plásticos; 700 mil toneladas de chumbo;1.300 toneladas de cádmio; 855 toneladas de cromo; e 285 toneladas de mercúrio.

É verdade que o computador tem seu lado negativo para Crianças e Jovens, mas também tem seu lado bom, como é o caso da pesquisa escolar.

 
At 12:35 AM, Blogger ACCA said...

O perigo da tecnologia eletrônica , principalmente do computador e celular é sua utilidade. Para que serve? É uma ferramenta de trabalho ou de entretenimento? O modismo tecnológico, quanto mais potente o computador ou o celular com mais acessórios, mais acompanho a sociedade de consumo. O computador e celular viraram marca de consumo.
O filosofo Herbert Marcuse: em Sociedade Tecnológica sintetiza esse consumismo desenfreado; “ De fato, uma sociedade avançada, em razão do progresso tecnológico, somente se sustenta quando organiza e explora, com êxito, a produtividade da civilização industrial. A crescente produtividade de mercadorias e serviços traz consigo atitudes e hábitos prescritos, que acabam mobilizando a sociedade em seu todo, com a promessa utópica do ócio, do entretenimento e lazer organizados”. Esse é o grande problema futuro da sociedade; o consumo necessário verso consumo supérfluo.

 

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